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19 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Imaginar com justeza:
a verdadeira gênese adivinhatória
Júlio Soares
Esse texto teve início em uma discussão no facebook. Não é a forma mais elegante de iniciar um argumento, eu sei, mas não controlamos as circunstâncias da vida. Em determinado ponto, entrei em uma discussão a respeito da Torre: a pessoa insistia que as "bolinhas" que caem do Arcano XVI representam moedas e que, logo, este Arcano fala em sorte, dinheiro, fortuna. Minha resposta, naturalmente, foi um "o que?".
Expliquei a história da carta da Torre. Mostrei a evolução iconográfica. Mencionei o Tarô Mitelli, onde aparece um homem sendo atingido por um raio; citei o famoso Tarô de Paris, onde esta carta apresenta a cena do rapto de Eurídice no Hades; lembrei também o fato de que os antigos baralhos conhecidos como Visconti-Sforza não possuem a carta da Torre; citei as relações com algumas cartas de conversação, como a "Disgrazia" da Sibilla della Zingara, onde aparece um incêndio. Enfim, montei um discurso para explicar que em nenhuma representação clássica esta carta foi ilustrada de maneira a representar fortuna. Neste ponto, acho importante dar ênfase a uma questão: não estou dizendo que a carta da Torre será sempre negativa, mas meu ponto foi justamente mostrar como a sua natureza simbólica sempre foi associada primeiramente ao caos, à ruptura, etc.
A Torre nos tarôs de Mitelli, Paris e na Sibilla della Zingara
Versões do arcano 16. Torre : O Raio no tarô de Mitelli (1660); "La Fouldre", o "Raio, no Tarô de Paris (1559);
"Disgrazia" ou "Desgraça" na Sibilla della Zingara (1890)
A resposta que me foi dada: "o tarô é uma máquina de imaginar" e "eu vi isso acontecer em jogos meus: a Torre que eu li como pobreza e o cliente ganhar dinheiro, o Louco representando X e a pessoa passar por Y", etc., etc. Estes dois pontos são a base da minha discussão aqui: primeiramente, a frase "o tarô é uma máquina de imaginar" é algo tirado do livro "O Tarô ou a Máquina de Imaginar", de 1971, escrito por Alberto Cousté – um dos livros mais preciosos já escritos sobre este oráculo. Ele merece destaque por expor as ideias de Oswald Wirth, um dos mais célebres autores da escola francesa. Quando essa frase foi utilizada como justificativa para o argumento de que a Torre significava dinheiro, eu entendi uma coisa: há uma interpretação errônea sobre a essência do interpretar. O fato de a pessoa ter utilizado jogos que havia feito e cujos resultados eram diferentes também mostrava outro erro comum: quando falamos de um jogo é diferente de quando falamos de uma carta.
É preciso entender que, sim, em um jogo, as cartas têm as atribuições misturadas às outras, a outros contextos, à própria pergunta, ao momento da leitura, etc. Um jogo de Tarô é um processo combinatório, e esta combinação de elementos cria significados múltiplos – como bem mostrou Italo Calvino no livro "O Castelo dos Destinos Cruzados" ou autores como Hadés em "Cartas e Destino" e mesmo o clássico brasileiro que nos trouxe Papus: o "Tarô Adivinhatório", da Pensamento.
O processo combinatório liberta a gente das famosas "palavras-chave" enquanto prisões, e faz com que cartas como o Arcano XIII deixem ser somente "Morte" ou "Transformação", podendo ganhar contextos muito mais profundos – e isso é basicamente a síntese de toda a tradição cartomântica iniciada no século XIX – não somente no Tarô, mas também com o advento da cartomancia francesa, com a popularidade das cartas de conversação, etc. A possibilidade de combinar cartas e fazê-las conversar entre si é o funcionamento que dá potencial ao fazer oracular cartomântico.
Há, porém, um adendo: não podemos nos esquecer de que um símbolo nunca pode ultrapassar a sua própria natureza, muito menos ser infiel a ela. Quando analisamos um Arcano Maior do Tarô, temos que levar em consideração três fatores dos quais tiramos nossa interpretação:
1. o nome, que serve como referência ou ponto de partida simbólico, como uma âncora que não nos deixa ir além daquilo diante do qual estamos de frente – A Torre jamais será o Mago justamente por que ela é a Torre;
2. o número, que serve para localizar o Arcano dentro de uma estrutura e dar uma significação a partir de uma determinada ordem ao dizer que carta X localiza-se entre A e B;
3. e, por fim, a imagem, que é a referência simbólica com mais destaque e mais constância dentro do Tarô. Explico: por mais que, ao longo do tempo, as imagens de determinadas cartas tenham mudado, e muito, os Trunfos, hoje conhecidos como Arcanos Maiores, sempre tiveram imagens. A numeração e nomeação foram posteriores, colocadas a princípio por questões convenientes ao uso lúdico em jogos de mesa e, com o tempo, a partir de pensamentos filosófico-esotéricos. A imagem sempre existiu, e é interessante notar como, ao longo da história do Tarô, muitas vezes, mesmo que elas sejam diferentes, querem contar coisas similares.
Volto novamente para a Torre: em todas as representações clássicas há um anúncio de tragédia, de destruição. Quando analisamos a carta, e somente a carta crua, a sua primeira e principal mensagem sempre foi e será negativa. Quando falamos que a Torre cai para que a Estrela possa brilhar, ou então que somente a queda da Torre pode quebrar a influência do Diabo sobre o ser humano, já deixamos de analisar o símbolo em seu cerne, porque estamos falando da combinação, do jogo, do contexto. É claro que a Torre não será sempre uma coisa ruim, mas isso ocorrerá em um jogo, não em seu cerne simbólico.
Existe certa coerência, certa tradição simbólica que deve ser levada em conta na hora da interpretação. Cousté baseia a sua obra "O Tarô ou a Máquina de Imaginar" no pensamento de Oswald Wirth, que possui uma frase muito célebre, que, em minha opinião, é a gênese da boa leitura simbólica, da verdadeira cartomancia: "adivinhar é imaginar com justeza".
Diante do jogo de Tarô, temos a imaginação, é verdade. Temos a missão de transformar imagens medievais em contextos contemporâneos, precisamos ter uma agilidade no olhar para conseguirmos adaptar os símbolos à vida da pessoa diante de nós. Se não fosse assim, sempre que existisse a Torre leríamos um prédio a cair (e, às vezes, ela representa isso mesmo), mas é importante que nos lembremos de que estamos sim diante de um sistema limitado: temos um número limitado de cartas, com imagens produzidas em determinado contexto, e temos que ler este oráculo diante das limitações (contexto, perguntas) dadas pelo consulente. É justamente esta limitação e a nossa relação com esta limitação que traduzirá será o famoso "imaginar com justeza", a verdadeira síntese da cartomancia.
É importante termos certa liberdade, mas, mais importante ainda, é estarmos conscientes de que não temos controle sobre tudo, e que existem certos sistemas que precisam ser respeitados. É isso que diferencia o jogar tarô de simplesmente viajar na maionese.
Júlio Soares, tarologo, oferece consultas e workshops
em Porto Alegre : www.fortunaarcana.com
www.facebook.com/fortunaarcana
Outros trabalhos seus no Clube do TarôAutores
Edição: CKR 08/07/2020
  Baralho Cigano
  Tarô Egípcio
  Quatro pilares
  Orientação
  O Momento
  I Ching
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