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15 de outubro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Os trunfos do Tarocchino Mitelli
Tárcio Sparvoli
Giuseppe Maria Mitelli foi um pintor do período Barroco que ficou conhecido pelas gravuras subversivas e jogos que criava. Foram mais de 30 jogos, cujos nomes nos faz sorrir e meditar, como O Jogo de Todas as Formas de Nariz (1687), Jogo da Verdade (1688), Jogo da Mulher Amada com Seus Amantes (1960), Jogo dos Olhos e Bocas (1690), Jogo dos Maridos e Esposas (1691), Jogo de Sorte e Azar (1700).
Foglieto do gravurista Mitelli
Giuseppe Maria Mitelli (1634–1718) foi um fértil gravurista italiano do período barroco.
Gravura disponível no www.britishmuseum.org/research/collection_online
Em 1660 produziu este tarô para Filippo Bentivoglio, da família feudal estabelecida em Bolonha no século XIV. Apenas as cartas de 2 a 5 foram removidas entre os arcanos menores, talvez por serem compensadas por quatro figuras da corte, curiosidade que se assemelha ao jogo de truco . Os arcanos maiores e os ases foram mantidos, totalizando 62 cartas. Esse jogo é conhecido por Tarocchino Mitelli ou Mitelli Bolognese.
Mitellli - os quatro ases
No Az de Copas, o brasão da família Bentivoglio e, no de Ouros, o auto-retrato do gravurista.
Imagem no http://eno-tarot.blogspot.com/2012/04/das-tarockspiel-aus-bologna.html
No Ás de Copas é possível ver o brasão da família Bentivoglio, para quem o baralho foi produzido. Enquanto no Ás de Ouros, um medalhão com o retrato do autor carrega o seu nome. Em Ás de Paus, “vitus árdua” e em Ás de Espadas, “custos custódia” são motes que se referem respectivamente à “recorrência das virtudes diante das dificuldades” (virtvs ardva) e à “produção (cvstos) e proteção (cvstodiæ) de bens”. É comum também relacionar o Ás de Espadas ao Imposto do Selo, ideia difundida na mesma época em que este baralho foi criado.
Os Trunfos
A sequência dos arcanos maiores costuma causar confusão pela falta de semelhança com os tarôs mais conhecidos. É possível notar alguns personagens mitológicos entre as figuras dos 22 triunfos que expressam sensibilidade tipicamente barroca, ecletismo isento de quase todas as referências simbólicas tradicionais.
Tudo que existe no universo pode ser interpretado com um único símbolo (1) e a falta dele (0), prova disso está na tecnologia, inteiramente programada por uma sequência de dígitos “zero” e “um”, capaz de criar um mundo até então desconhecido, com aplicativos, internet, terminais e dispositivos eletrônicos, mas também de sobrepor o mundo analógico de outrora, mais tangível com telegrafos, impressos, cartuchos, cassetes e discos compactos. O “digital” sempre existiu e toda vez que o homem reconhece a falta de um dígito, símbolo, caractere ou ícone, tende a evoluir, crescer e expandir, unificando tudo que tem, é e está em Deus. Ambos, são forças geradoras do universo.
Do zero, o Louco já está vagando entre cidades, campos, reinados, florestas e vilarejos, é importante notar que ele não se encontra em comunidade. Segura um brinquedo no qual um balão amarrado representa a falta de pertences. O balão não está vazio, é cheio de ar, de fôlego. Para um ser humano adulto, um brinquedo não tem serventia nenhuma e mesmo assim é a única coisa que o Bobo carrega enquanto fita o céu. Há uma semelhança com a ideia de “nada próprio”, voto franciscano bastante difundido na época. Representa o caos que cria o universo através da distinção dos elementos, a separação que proporciona amplitude, o vazio primordial que preenche o espaço. O Louco, zerado, nada possui e tudo repele, mas ainda assim se diverte com que está ao seu alcance, por mais inútil que aquilo possa parecer. O que ele vê no céu, só é visto por ele e ninguém mais, realiza a repulsa do elementos para evitar que sejam consumidos em uma confusão inexorável. Com apenas um pé no chão, se assemelha ao primeiro Trunfo, sempre em movimento. Cria pela separação (mitose).
O Louco e o Mágico no Tarô de Mitelli
O Louco e o Prestidigitador (ou Mágico) no Tarô de Mitelli
O Prestidigitador, também conhecido como Mago ou Bagatto, é um artista de rua que se apresenta diante de um pequeno grupo de pessoas, tocando música/pandeiro e dançando junto com um cachorro. Não só direciona as energias elementares para criação de um novo mundo, como também redireciona o mundo todo para que o acompanhe com espontaneidade e alegria. Ele pode circular pelo vilarejo ou mesmo sair de lá, dependendo da reação do seu público é possível até levar uma multidão junto com ele, mas é um arquétipo em solitude e mesmo acompanhado sabe que sozinho veio ao mundo e sozinho deixará esta terra. As pessoas observam o mundo através dos seus olhos, mas não controlam seus atos. Ninguém mais pode existir no lugar dele, respirar por ele ou agir no seu lugar, realiza a fusão dos elementos para criar vida, agrupando a humanidade em torno de um ideal. Representa a unicidade do Divino em nós e em toda nossa volta, um único universo, um único movimento, uma consciência única. Cria pela união (meiose).
O segundo Trunfo é conhecido como O Papa Sentado, seria a Papisa ou Sacerdotisa, não só por se encontrar entronizado guardando a sagrada palavra, mas também por vestir o toucado de 3 camadas, poder que se manifesta pela terra, acima e abaixo. Organiza as informações no templo para quem busca a espiritualidade e faz isso como a Virgem que prepara no ventre o que virá a ser o filho de Deus. No inconsciente do homem, a Papisa existe como uma expressão feminina interior chamada anima, já o inconsciente da mulher encontra expressão como uma personalidade interior masculina, chamada animus.
Mitelli Bolognese - reedição de Vito
Edição de Vito Arienti (1977) do tarô Mitelli Bolognese
Há uma edição publicada por Vito Arienti (Edizioni del Solleone, in 1977) que foi reproduzida a partir de fotocópias de colecionadores. São cartas extremamente raras cujo número “2” aparece escrito à mão, justamente para diferenciar este Papa do quinto Trunfo. Fogo espiritual masculinizado, este arquétipo representa a fertilização do que é virgem em nome do sagrado e prova que sempre haverá um livro maior, mais antigo, dentro de livros maiores, mais antigos, para provar que sabemos pouco ou quase nada.
A Papisa e o Papa no tarô de Mitelli
A Papisa (o Papa Sentado) e o Papa no tarô de Mitelli
O trunfo de número 5 é representado pelo Papa em pé, levando a palavra pelo mundo, diferente do Papa sentado, que recebe quem busca por ela. Este arquétipo parece mais interessado em propagar que a fé e a palavra é uma só, a lei universal. Não se trata de sagradas escrituras, nem de alguma palavra de um idioma qualquer, pois não serve somente aos homens. Os minerais, os vegetais, os animais e até mesmo outros planetas e estrelas existem segundo essa mesma regra, a Ordem Divina. Tudo está em constante mutação, nada é absoluto, somente a inconstância é eterna.
Estas duas figuras religiosas também podem ser a mesma em dois momentos diferentes. Nesta segunda etapa, o dever do Papa vai além de emitir as mensagens que formou no templo, ele também recebe, assimila e absorve todo tipo de informação do ambiente externo. Ele abraça o caos e só com fé isso é possível. Pode se referir ao Papa Gregório XV, fundador da Congregação da Propagação da Fé. Representa a quintessência tudo que há de sagrado na família, o signo de Câncer e o mês de Julho, antes chamado de Quintilis em latim por ser o quinto mês do Calendário Romano.
Uma das raras representações da Imperatriz em pé, longe do trono, se encontra no terceiro Trunfo. Nesta carta, a dona do mundo carrega o globo que representa o reinado que compartilha. Semelhante à peça do xadrez, este arquétipo é de longo alcance, aponta todas as direções por ser a única detentora do potencial criativo, função que homem nenhum fará por mulher alguma. Representa a mãe que cuida dos próprios filhos (o povo) visitando cada local, seja lar, comercio, de cultivo ou de cura. É ela que influencia a igreja na construção de hospitais e escolas, sem desvalorizar a arte. Representa a criação e a fertilidade, a mãe Gaia, que governa pela terra com a mão direita por baixo do globo. Ela gerou o céu (Urano) para que a cubra completamente formando assim o lar eterno dos deuses bem-aventurados. Sozinha, deu origem às águas (ponto), às montanhas (óreas) e ao tempo (Cronos) que depois de ganhar os céus, foi derrotado pela eternidade (Júpiter), também cria dela. Vem do mesmo vazio (caos) que deu origem à gravidade (abismo/tártaro), ao preenchimento (amor/Cupido), ao vácuo (escuridão/érebo) e ao universo (noite/nix).
A Imperatriz, o Imperador e o Enamorado no tarô de Mitelli
A Imperatriz, o Imperador e o Enamorado no tarô de Mitelli
O Imperador, arcano seguinte, protege este mesmo globo e governa seu reino de maneira unidirecional, mais contida e determinada, parece observar até onde a Imperatriz pode chegar. Está tranquilo porque prospera. Ele pode contar com o Papa na retaguarda, cuidando dos assuntos que estão além do corpo físico, mental e emocional. Também sabe que a sua parceira sempre torna a dividir momentos preciosos, pois o poder não é exclusividade de ninguém. Representa Urano e governa pelo céu, com a mão direita no topo do globo. É a mensagem que controla a construção do ser e a consciência de que ninguém é um corpo físico, mas sim um avatar transcendental que domina a matéria e se limita por ela. Simboliza as conclusões que tiramos ao perceber a relação entre os movimentos.
O primeiro personagem mitológico da sequência parece mais evidente na figura do Cupido, ou Enamorado. O sexto Trunfo é considerado um deus primordial que veio do caos para ser deus do erotismo e da paixão. Filho da riqueza com a miséria, acompanha a beleza (Vênus) e anuncia a sua chegada, na carta a seguir. Representa a consciência inseparável das emoções, que jamais poderia encarar os sentimentos que produz. É a personificação da alma (psiquê) separada do corpo emocional que Deus resgata para viver eternamente na quarta dimensão. É a mente que se funde com o coração, produzindo prazer (hedonê) e apesar de ser representado por uma pedra na Grécia pré-histórica, aparece aqui na figura de um jovem anjo de olhos vendados para lembrar que o amor é cego e que tudo que é jovem, belo parece. Suas flechadas vem do oculto, mas abrange todo o mundo terrestre e incendeia o coração, seu alvo, para que o fogo da paixão seja despertado e espante as incertezas da vida. Representa o coração ardente, o mês de Agosto e o signo de Leão, é o ato do sexo (six) que faz o indivíduo se encontrar ou cair em perdição.
Quem chega neste Carro do sétimo trunfo é Vênus. A deusa do Amor, cuja carruagem é puxada por pombos, tem mais beleza do que qualquer outra divindade. Representa a nossa capacidade de dar valor por comparação, mas para sentir qualquer coisa (emocional)  é preciso antes conhecer (mental). Este ideal de beleza perfeita causa a perdição na Terra porque a humanidade não é capaz de alcançá-lo, por mais que se aproxime. Os homens que perdem a razão (minerva) por causa da aparência, corrompem a pureza do sagrado feminino (artemis) e tornam menor a chama do próprio fogo espiritual (vesta). É preciso criar um contraste com esse belo que tanto incomoda as pessoas e por isso a feiura (Vulcano) tem serventia, como nos artesanatos, potes e ferramentas, mas a beleza é inútil por excelência, como nas artes, quadros e músicas. Na prática, viveríamos do mesmo jeito, com ou sem arte, mas algo nos impede de desistir de encontrar essa beleza perfeita, incontestável e verdadeira por si só.
Este é um problema que cabe somente aos seres humanos, pois no resto da natureza, entre plantas, minerais, animais e até corpos celestes, essa beleza é alcançada sem o mínimo de esforço. Tudo mais que existe é belo tanto individualmente (nuvem, árvore, borboleta) quanto agrupado (floresta, vale, ilha) e esta carta nos desafia a fazer o mesmo. Falhamos inevitavelmente, pois falta beleza nas utilidades que o homem cria e falta serventia nas artes que o homem produz. Prova disso é que o inverso não acontece, o restante da natureza parece nem se importar com os nossos filmes, templos ou votos. Por mais que a natureza seja autônoma, independente da nossa existência, ninguém é capaz de viver sem o que ela proporciona. Ela jamais abandona a humanidade, mas furiosa por ter sido abandonada, nos condena a se apaixonar por qualquer pessoa. Quem desperta essa fúria (Marte) não é vítima, mas quem é tomado por ela se torna um algoz, por mais independente que seja, por mais autonomia que tenha. O Carro não deixa de ser uma invenção humana, mas quem o conduz direciona o próprio destino e por cima das nuvens, é capaz de chegar a qualquer ponto do universo. Representa a prudência, virtude-mãe que regula e conduz as outras virtudes cardinais, também representadas no tarô pelas cartas da justiça, da força e da temperança.
Carro, Justiça e ERemita no tarô Mitelli
O Carro, a Justiça e o Eremita no Tarô Mitelli
A imagem da Justiça se assemelha a deusa Diké ou Thémis. Ainda não está vendada, conforme representado pela mitologia romana e carrega a espada com a balança, assim como faz Arcanjo Miguel, conhecido nas doutrinas judaicas, cristãs e islâmicas. Representa a constante e firme vontade de oferecer ao próximo o que lhe é devido, como uma medida compensatória, por mais que nossos atos, perdas e danos sejam irreversíveis. A justiça vem do mesmo plano que o obstáculo e sempre o supera, não importa qual seja o seu tamanho. É o oitavo Trunfo, representa outubro e a Balança que pondera medidas e regras infinitamente, procurando um equilíbrio que jamais vai existir. A Justiça foi a última divindade que deixou a Terra. Ainda circulava entre os homens indignada com a falta de compostura e moral, antes de fechar os olhos e partir para o invisível. Por isso estética sem ética sempre causa repulsa, por mais beleza, dinheiro, poder e bens que um indivíduo possa ter, sua consciência vale mais do que os seus ossos. A espada da justiça com a  balança estão à nossa disposição, mas a balança apenas pondera, enquanto a espada depende da ação humana, seja para derramar sangue ou para conceder títulos. É a vingadora das leis violadas.
Para Mitelli, o Eremita é Cronos, divindade do tempo e da eternidade (aeon), o mais jovem dos titãs é tão velho que precisa se apoiar nas muletas para governar o destino dos deuses imortais. Consome tudo que cria, por isso devora os próprios filhos e representa o passado sobre o futuro. Por mais que a geração envelhecida seja suprimida pelos mais jovens, das gerações seguintes, é dos restos deixados por nossos ancestrais que existimos e tudo que existe, se desgasta. Nosso comportamento determina o destino daqueles que ainda não nasceram. Só podemos controlar pensamentos e atitudes e não cabe à humanidade fazer escolhas em benefício próprio. É o nono arcano, representa novembro e os momentos finais da nossa vida antes da morte chegar. Se tudo correr bem, já estaremos envelhecidos quando chegarmos no fim da picada, mas se faltar atenção, esta morte pode nos atingir, pois está sempre à espreita. Vai depender dos nossos próprios passos, das nossas intenções em tudo que podemos fazer ou deixar que se desfaça. Ele não precisa de nenhum veículo para chegar onde quer, pois trafega entre todas as dimensões com as próprias asas e faz das muletas seu instrumento indispensável, reconhecendo que as invenções humanas sustentam o divino.
A Fortuna é uma representação do destino humano e se apoia na roda do leme mudando a direção do que nos transporta. Ela distribui os bens para humanidade de forma aleatória e coordena a vida pelo acaso, para que sempre haja esperança. Não existe graça sem desgraça e o azar é somente uma face da sorte. Acreditar ou desacreditar depende de um único ponto no espectro da fé. Este vértice em torno do qual somos direcionados não depende da nossa vontade nem dos nossos desejos. Gira no próprio eixo, com o vazio, mas também se desliza com a borda sem se importar com a direção. No sentido anti-horário poderia cair no plano e ser esmagada pela própria roda logo em seguida, no sentido horário parece criar um impulso que se dispara pelos céus, mas por enquanto parece ocupada em manter esse volante apontado para um destino bem específico e é lá que tudo faz sentido. Note que ela não oferece dinheiro por pena, mas joga por aí sem fazer distinção porque não precisa disso pra existir, tanto a pessoa mais distraída quanto a pessoa mais atenciosa tem chances iguais de encontrar tesouros sem propriedade, não depende da sua posição, mas sim dos seus movimentos. É feito uma flecha já disparada para amparar a nossa evolução, não tem a menor pretensão de ferir o ego, mas será doloroso toda vez que os sentidos naturais deste plano forem contrariados. Representa dezembro (decem, décimo mês do Calendário Romano) e tudo aquilo que está longe de acontecer, exigindo tempo para que seja alcançado.
Fortuna, Força e Traição no tarô de Mitelli

A Roda da Fortuna, a Força e a Traição (Pendurado ou Enforcado) no Tarô Mitelli

A constância na procura do bem e a firmeza diante das dificuldades é assegurada pela Força, o décimo primeiro arcano. Ela é o ponto que resiste, a coluna que se mantém erguida, mesmo em ruínas. Esta virtude se apoia e se agarra no bem comum sem deixar o plano material. Tem ciência de que nenhum esforço é em vão e de que todo trabalho vale a pena, pois a chegada nada difere da partida. Representa as transições entre futuro e passado, os portais, o início que todo final desperta e o fim de tudo que começa. Seu lenço amarrado na cabeça se assemelha à figura de Jano, divindade que olha pra frente e pra trás ao mesmo tempo, trabalha as horas constantemente, para começar, terminar e recomeçar. Não existe abertura sem fechamento e vice-versa, para dar fim é preciso dar início, só morre quem nasceu e para isso é preciso ter vivido.
O ser humano perde força quando abre mão de fazer escolhas e tomar decisões, se tornando um conformista à espera de ordens para se submeter sem questionar. Parece fácil, mas é preciso desconfiar de tudo que não é difícil, há uma beleza no esforço capaz de revolucionar o mundo. A paz universal existe e é garantida pelo tempo, a humanidade só está em uma faceta muito pequena disso tudo, provocando guerras, medindo forças com a natureza da qual faz parte. Quem paga por isso é a Terra, mas o resto do universo jamais sofrerá por ações humanas, há força de sobra para desconstruir nosso planeta em um instante, assim que o homem for longe demais.
A figura do Enforcado nos remete a um ser com fama de traíra, que veio ao mundo para nos salvar, mas acabou traído antes de morrer e se resume no trunfo 12, a Traição. Nesta carta, a figura de Vulcano é simbolizada pelo martelo. Esta divindade servia como ferreiro dos deuses e foi traído pela esposa, mas não teve culpa na fúria despertada em Vênus  depois que foi ela foi abandonada pelo amante, Marte. Apesar de sua horrenda aparência, ou justamente por causa disso, é extremamente útil e habilidoso, tanto que fabricou a primeira mulher mortal (pandora). Dá peso ao martelo que vai esmagar a cabeça daquele que dorme tranquilamente, o traído. Quem trai, faz isso pelas costas, mas também em um espaço isolado, para não ser visto enquanto executa o inocente. Parece determinado pelo bem geral do grupo, mas não imagina que depois não adianta condenar o martelo, objeto da traição. Se há algum culpado é quem opera essa ferramenta, mesmo que o traído mereça, nesse caso, a pessoa traída sempre estará protegida pela inconsciência, pois dorme sem chances de evitar o golpe. Não existe rebeldia maior do que oferecer os rebeldes em sacrifício, como era feito em fevereiro para Fébruo, divindade da purificação e da morte.
A Morte é a outra representação do destino humano, diferente da Fortuna, ela vem para nivelar toda forma de vida em um único instante, seja humano, animal ou vegetal, ela recebe todos da mesma forma. Ricos e pobres acabam por encontrá-la, não importa o quanto viveram, se foram bons, vítimas ou algozes. Nós só existimos na própria consciência e se não passarmos por essa transformação conscientemente, nada será apresentado para o Divino eternizar. A consciência do ser vale mais do que seus próprios ossos, estar ciente de que vai morrer assim como tudo aquilo que vive deveria nos proporcionar um alívio. O esqueleto nos acompanha onde formos, está guardado dentro de cada corpo e um dia ficará exposto, sim. Mas enquanto a humanidade ignorar a semelhança entre os esqueletos que a compõe, a beleza da transformação que a morte opera sempre será vista com maus olhos, algo que devemos sempre evitar, como um pensamento ruim, já que parece feio quando não é alimento. Nosso plano então se consome pela superfície, mas não deixa de conter uma profundidade que não é externa, astral, universal, mas sim interna, planetária, terrestre. Representa a consciência crística, que só é validada aqui. Por isso o amor e o ódio que andam juntos, não são opostos. O extremo oposto do amor é o medo (fobos) que acompanha o ódio onde quer que vá, uma vez que é fruto de uma traição. Sem medo, não há razão para ter ódio, mas com amor não há razão para ter medo. Não se deve temer a morte, mas sim evitar as extremidades em busca de um ponto intermediário mais elevado, feito um triângulo ou uma pirâmide, estrutura que compõe o cenário desta carta.
A Morte, a Temperança e o Diabo no Tarô de Mitelli
A Morte, a Temperança e o Diabo no Tarocchino Mitelli
É uma receita complexa que a Temperança nos ensina e as virtudes cardinais se completam com este trunfo. Raramente ilustrada sem asas, representa a moderação, o domínio das vontades sobre os instintos. Ela proporciona equilíbrio no consumo de bens e aplica prudência nos prazeres para que a humanidade não caia em perdição. É preciso desfrutar o salgado e o doce, o quente e o frio, o áspero e o liso, sentir tanto o toque da seda quanto do algodão. O universo é feito de contrastes e a vida acontece entre os opostos, onde um espectro infinito se desdobra, criando nuances sem perder o fundamento. Quando o caráter é bem formado, fica muito mais fácil conduzir o temperamento e para isso é preciso mirar um propósito maior, um ideal de vida mais elevado, capaz de nortear os nossos sentidos e depurar o nosso gosto, promovendo assim a evolução. Foi assim que criamos o chocolate, o plástico, fotografia, fibra ótica e toda a sorte de materiais, alimentos e remédios que hoje proporciona um mundo com menos escassez. Através da combinação exata de elementos específicos, encontramos um novo gosto. Ninguém sabia se ia gostar da Internet, mas ela jamais teria sido desenvolvida se dependesse da nossa aprovação. A vontade se derrama sobre os instintos com moderação para o prazer jamais diluir a prudência. Caso contrário, não haveria evolução. O movimento e o equilíbrio formam o sexto e o sétimo sentido físico do ser.
O pavor que a humanidade tem da morte só não é maior do que o susto que o Diabo provoca quando aparece. Representado por Netuno, é a divindade das fontes e das correntes de água, não precisa de roupas já que sua aparência é o suficiente para demonstrar poder. Seu reino é submerso nas águas e por isso se assemelha com o submundo. Usa o tridente para dominar as selvagerias do plano inferior, é capaz de provocar terremotos, tempestades e tormentas. O demônio é uma representação da vida no outro mundo, possui tanto partes humanas quanto animalescas, nos desafia a encarar os medos para nos livrarmos deles e nos convida a abraçar o caos de onde tudo vem e para onde tudo vai. Ele é o mal que fortalece o bem, possui chifres para demonstrar fertilidade e nos lembra que tudo que é grotesco vem da Terra, já que o resto do universo não comporta nada que não seja belo. Se pudéssemos ver apenas as suas partes separadamente, jamais teríamos medo, mas o conjunto, com garras e pontas, impressiona. É preciso estar atento aos detalhes para evitar que o medo nos faça parecer monstros, pois é assim que nos deixamos ser dominados. A humanidade está habituada a atacar tudo que provoca medo e teme tudo que ainda desconhece, inclusive Deus. Enquanto houver fronteiras pelo mundo, haverá medo e é pelo medo que o mal se garante.
O Raio que atinge o homem é o mesmo que atinge a Torre, também conhecida como Casa de Deus (Hon Sha Ze Sho Nen). Se refere ao fenômeno repentino ocorrido no dia de Pentecostes, quando “línguas de fogo” pousaram sobre os seres após um estrondo no céu, preenchendo a humanidade com Espírito Santo. Sutilmente filtrado por um pedaço de tecido, este raio é semelhante ao que Júpiter detém e dispara. O pai dos deuses exerce autoridade sobre todos os demais e seus atos são realizados em um instante, de imediato, tão de repente quanto a manifestação do Espírito Santo descrita na bíblia. Na torre, é a força que lança a humanidade de volta para o plano terrestre, aqui essa força nos lança de volta para nós mesmos, já que não existe poder que não seja conhecimento e não existe conhecimento que não seja auto-conhecimento. A reverência que o ser humano faz nesta carta é sinal de respeito por tudo aquilo que vem do oculto e declara a forma humana como morada do Senhor. Representa o tempo vencido pela eternidade.
O Raio (Torre), a Estrela e a Lua no Tarocchino Mitelli
O Raio (Torre), a Estrela e a Lua no Tarocchino Mitelli
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Quem segue as Estrelas é o Peregrino, personagem essencial no jogo da oca e em diversos outros oráculos. Representa a multiplicidade do ser em diferentes momentos, o louco que parte embora é o eremita que volta pra casa, este Peregrino sabe que a luz das estrelas não desfaz as névoas, mas mesmo assim o mantém no caminho certo. Está equipado para o que der e vier, nada o fará desistir, nem mesmo as sombras. Carrega a luz consigo e quanto mais avança, mais percebe que a escuridão nem sequer existe, pois a cada passo só encontra o vazio iluminado ao seu redor. Depois de sermos lançados de volta para a Terra com a luz do divino espírito, mantemos o fogo aceso, que é leve, para prosseguir nossa jornada, mas também carregamos um certo peso, talvez o mínimo indispensável para sobreviver. Mais adiante não haverá mais necessidade de se aderir ao peso das coisas, basta o peso do ar dentro de si.
Este fogo espiritual que carregamos sem esforço nos faz refletir sobre tudo que é iluminado e a Lua representa a reflexão em torno do nosso mundo. Está crescente na cabeça de Diana, deusa da lua, da pureza, dos animais e da agricultura. Sempre virgem, é acompanhada por um galgo, cachorro cativante pelo qual se responsabiliza. Leva uma lança capaz de alcançar todo o espaço sobre e ao redor do plano material, tem mais destreza que todos os deuses e mortais. Governa os seres vivos e enquanto os protege, aponta para o corpo celeste mutável, que parece autônomo, mas depende da Terra para cumprir seus ciclos e do Sol para ser vista. É o macrocosmo que influencia o mundo, interferindo diariamente nas nossas escolhas, mas sempre fora do nosso controle.
Apolo, divindade do Sol, é irmão gêmeo da Lua e segue um movimento muito maior, este sim autônomo, como toda Estrela, conforme Copérnico já havia comprovado. Representa a luz no caminho, a luz da verdade e a luz vital para todos os seres. Traz esclarecimento entre os indivíduos, nos permitindo compreensão. Preside leis, constitui cidades, torna a humanidade civilizada e é a imagem do Salvador no cristianismo primitivo. Nasceram na ilha flutuante de Delos porque a mãe, Latona, estava proibida de concebê-los em terra firme. Não se fixam na terra e jamais cessam o movimento diário que atravessa o céu. Parecem ter o mesmo tamanho para quem observa do chão, mas guardam uma ciência muito maior. Irrompe um arquétipo semelhante às miudezas do microcosmo, um universo quântico que está por fora e por dentro de tudo. A verdade inquestionável de comum acordo, que continua existindo independente da vida ou da falta dela.
O Sol, o Anjo e o Mundo no Tarocchino Mitelli
O Sol, o Anjo e o Mundo no Tarocchi Mitelli
O anjo é outra representação da vida no outro Mundo. Esse sopro que a trombeta representa é capaz de levantar os mortos da terra (Julgamento). Quando nos livramos até mesmo do peso do ar que guardamos em nós, não existe mais razão para se aderir à nada e nem à ninguém. É desapegar sem julgar, entender que abraçar a riqueza ou pobreza não faz sentido nenhum. Não existe caridade que não seja dedicação. Doar dinheiro, tempo ou bens não garante uma posição melhor em outro mundo. É o peso da consciência que deve ser avaliado no fim das contas, não o que pensam de você, mas sim com quais interesses você agiu. Se estes interesses se assemelham aos interesses dos animais, das plantas, da terra, da qualidade da água e do ar sobre o mundo, das crianças que ainda não nasceram e que pouco dependem da sua existência, o que resta é um mundo melhor. Mas se os seus interesses diferem dos interesses de tudo que não é humano, nem alma existe para se perder. Fica muito difícil elevar uma consciência assim.
Finalmente o Mundo, nos braços de Atlas ou Atlante, encerra a sequência dos arcanos maiores. Ele foi o primeiro rei de Atlântida, dá nome ao oceano Atlântico e sustenta as colunas do mundo pelo estreito de Gibraltar, portal entre o velho mar mediterrâneo e o novo continente além das águas . Ele é um titã, feito Cronos e faz girar a grande roda da vida. O mundo externo reflete o mundo interno e apenas em completude é possível experienciar a verdadeira realidade. Não estamos fora, mas também não estamos dentro, a vida acontece nessa fina camada atmosférica sem a qual não haveria consciência. Esse peso sobre os ombros nada mais é do que a própria cabeça de cada um, que pode pesar mais do que um planeta inteiro dependendo do stress que a coluna suporta. Mas aqui ele abraça, não joga nas costas, segura o firmamento e o mundo é apenas o seu conteúdo, a grande gema. Ele observa a Terra através do Céu e é muito maior que ambos. Torna o mundo precioso por sua miudeza e prova que vivemos no avesso da realidade, pois há sempre um plano maior que qualquer superfície.
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Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores
Edição: CKR – 31/01/2019
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