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25 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Hermes e Montezuma
Um Tarot Mexicano do século XVI
Maria Isabel Grañén Porrúa
 
Qveztecal - carta do tarot Mexicano
Um presente valioso para o estudo histórico dos baralhos nos é oferecido por María Isabel Grañén Porrúa, licenciada em História da Arte na Universidade Iberoamericana do México. Nessa mesma disciplina ela fez seu doutorado na Universidade de Sevilha e focou seu campo de estudo em gravuras e livros novohispanos do século XVI.
O original do seu texto Hermes y Moctezuma, un tarot mexicano del siglo XVI encontra-se disponível no site do Instituto de Investigações Históricas da UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México:
www.historicas.unam.mx/publicaciones/revistas/nahuatl/ pdf/ecn27/530.pdf
Esse trabalho chega até nós graças às pesquisas de Katharina Dupont, artista plástica e estudiosa do tarô, que já divulgou criações de sua autoria no Clube do Tarô: EntreMundos Tarot. Foi Katarina quem fez a tradução inicial do Tarot Mexicano de Isabel Grañén Porrúa e convidou Luciana Onofre Martins para completar a tradução e realizar a revisão.
Só nos resta agradecer a esse trio feminino por dispormos, em português, de informações históricas que ampliam nosso conhecimento da atmosfera que cerca o jogo de cartas em sua chegada ao Novo Mundo.
Editoração de Constantino K. Riemma
O baralho na América
As cartas de baralho, um antigo jogo disseminado entre orientais [1] e europeus, chegou à América a partir dos primeiros contatos entre as duas civilizações.
Os navegantes de Cristovão Colombo se entretinham jogando às cartas durante o percurso da viagem e da mesma forma os passageiros que viajavam da Europa rumo às Índias se mostravam jogadores assíduos, fazendo uso dos baralhos como distração nas longas horas em que a nave sulcava até aportar a seu destino.
Os conquistadores em seus momentos de lazer jogavam cartas. Hernán Cortés era um grande aficionado por este jogo e muito propenso ao uso de dados. As cartas que usavam eram importadas da Europa, local aonde eram manufaturadas em grandes quantidades. No entanto, a prática do seu jogo na América Hispânica era intensa, o que tornava difícil a espera por longos meses para sua chegada do velho continente. Deste modo os jogadores estando em terra firme se viam na necessidade de criar seus próprios baralhos, usando diversos materiais, tais como peles de animal, folhas ou cascas de árvores, papéis feitos de algodão ou couro retirado dos reparos de tambores.[2]
Naipes de Piel - Sans Ferran    Cartas impressas em peles
J. M. Sans Ferran estudou exemplos de baralhos ('naipes')
impressos no México em couro curtido ('piel') como alternativa ao papel.
À direita, reprodução de modelos artesanais no início da colonização espanhola.
Fonte das ilustrações: www.todocoleccion.net
O uso do baralho se popularizou rapidamente na América Hispânica. Os soldados foram seus mais fiéis usuários e contagiaram aos indígenas com esse hábito; estes se reuniam ao redor das mesas de jogo para aprender seu uso. De acordo a Bernal Díaz del Castillo, quando o Imperador asteca Montezuma II estava sob custódia, os espanhóis jogavam cartas com ele e ele se entretinha de bom grado com isso.
Os frades não permaneciam alheios a esta atividade, apesar das regulamentos das Constituições da Arquidiocese da Nova Espanha, rígidas na proibição desse tipo de atividade por parte de clérigos, jogos de mesa, dados, baralhos, e outros entretenimentos qualificados como “censuráveis”. Era considerada ilícita a aposta de dinheiro, joias, prendas, ou que os clérigos fossem fiadores de outros jogadores. Os religiosos deviam usar seu tempo em “santos e bons exercícios, e assim dar bom exemplo”, pois os leigos poderiam julgá-los e considerar seus atos levianos; as Constituições expunham: “não venham por esse motivo a sofrer menosprezo ou a ser considerados como indignos daquilo que sua ordem e hábito requerem”.
Os baralhos se tornaram deste modo um estímulo social. As relações entre os indígenas, os conquistadores, soldados, escravos, comerciantes, clérigos e a nobreza se tornaram mais próximas através do jogo. Os jogos requeriam certo tempo e os participantes aumentavam seu interesse em vista do dinheiro apostado e, muitas vezes, o apelo mágico e divinatório que prevalecia entre os mais supersticiosos funcionava como atrativo.
Com tudo, apesar desta simpatia hispano-americana pelos baralhos, os jogos de azar receberam críticas negativas. Foram impressos livros que discorriam sobre a moralidade do jogo, ao estabelecer limites entre o lazer ou a necessidade de descanso e o perigo que corria a consciência ao desafiar a deus.[3] Para alguns frades, como Diego Durán, o risco que corriam os aficionados pelo jogo não apenas se referia à perda de bens imóveis e vidas, mas “as almas irão muito sofrer”, pois os viciados se tornavam “eternos escravos” e isto fazia que os jogadores esquecessem suas obrigações, sendo assim considerados “gente infame e de má índole”.[4] Do mesmo modo as publicações da Nova Espanha do século XVI divulgaram opiniões contrárias ao uso dos baralhos, como a de Frei Juan Bautista, que era categórico ao considerar que a ação dos jogadores era “pecado mortal”.[5]
Hernán Cortés após prometer a Frei Domingo de Betanzos que abandonaria o jogo, reuniu-se com seus amigos e tornaram a usar o baralho. Nesse instante caiu um raio sobre a casa e isso os deixou assombrados. No dia seguinte os jogadores compareceram à escola dominical e juraram jamais voltar a jogar. Além das opiniões preconceituosas de alguns religiosos, os temores a rixas, escândalos e falência econômica das famílias deram origem a uma série de regras que proibiam os jogos com apostas. Na Nova Espanha as proibições contra o jogo começaram muito cedo. A mais antiga ocorreu contra os baralhos e dados no dia 1 de fevereiro de 1525.[6] No entanto, tais restrições não apresentaram maiores efeitos, pois os costumes estavam já sedimentados, mesmo que os jogadores passassem a frequentar outros locais, deixando de lado os antigos espaços públicos – como tavernas, praças ou cemitérios - se reunindo em casas ou locais aonde não fossem percebidos facilmente.
Embora houvesse certa tolerância, os decretos legais contra o jogo perduraram e jamais foi permitido empréstimos a jogadores contumazes. Um meio idealizado para controlar os jogos foi a produção de baralhos, pois desde o início do século XVI, a Coroa vetou a confecção de baralhos no Novo Mundo. No entanto, apesar das proibições a fabricação dos baralhos continuou até o período Colonial. O bibliotecário Joaquín García Icazbalceta, afirma que no final do século XVI eram fabricados no México, nove mil dúzias de baralhos a cada ano, vendidos a três reais cada, e muito mais apreciados que aqueles vindos da Espanha.[7]
Como registramos, a Coroa tentou proibir os jogos de azar, usando rígidas condições, porém seus propósitos não surgiram efeito. Era impossível manter controle total sobre leque de passatempos, pelo que a meados do século XVI, Felipe II decidiu tornar o jogo com baralho em fonte de renda da Real Hacienda.[8] Assim no dia 13 de setembro de 1552, o rei determinou que fosse estabelecido um órgão encarregado pela produção e distribuição dos baralhos nas Índias, seguindo o mesmo padrão praticado na Europa, o que devia proporcionar uma renda estável aos cofres reais.[9]
O Tarô Mexicano
As cartas, assim como as notas musicais, devem se adequar a um tom, de modo que os jogadores possam reconhecê-las com rapidez e exatidão. Este é, talvez, o aspecto que mais chama a atenção em um documento com dezoito cartas que se encontra no Arquivo Geral das Índias de Sevilha. A análise da sua iconografia possui particular interesse, pois é o único baralho com pano de fundo latino-americano que chegou até nós. Estas lâminas foram impressas na oficina do segundo administrador do comércio de baralhos, Alonso Martínez de Orteguilla, em 1583.[10]
O documento contém dezoito cartas apresentadas em linhas, cada uma delas com seis ilustrações cada para facilitar seu corte. As figuras estão cercadas por molduras com linhas inclinadas da esquerda para a direita as quais certamente foram concebidas desta forma para unificar o desenho com o dorso das cartas. Ao todo o documento mede 41 cm de largura por 27,8 cm de altura e cada carta mede 6,8 cm por 9,2 cm. Este baralho foi confeccionado pelo processo de xilogravura[11] ou gravura em madeira. Além da sua função lúdica, constitui um excelente meio para a difusão de ideias.
No dorso deste documento há uma nota manuscrita: “Cada uma destas figuras é o dorso de cada baralho de cartas, de modo que cada uma destas figuras deve ser disposta no dorso de cada baralho”. Com isto, Maria Antonia Colomar supôs que o documento corresponde ao dorso de outros três conjuntos de cartas que acompanhavam o mesmo contrato de Martínez Orteguilla, as quais apresentam as figuras tradicionais das cartas espanholas.[12] Certamente, é difícil pensar que o verso de um baralho possua design diferente para cada carta, pois desta forma o jogador poderia identificá-la pelo dorso.  A mesma autora se surpreendeu com a qualidade e a diversidade estilística entre o documento que estudamos e os baralhos restantes que compõem o contrato, já que os formatos sugerem diferentes autores.[13] Além do que, os números das cartas e os tamanhos diferem uns dos outros, pois, no momento da prensagem, as figuras do verso não combinariam com as do dorso.
As imagens do tarô a que nos referimos dividem-se em temas europeus e latino-americanos, cujos aspectos formais derivam de uma iconografia emblemática. As alegorias europeias mostram um estilo similar ao da escola xilográfica alemã do Renascimento, cujas linhas espessas se assemelham aos modelos realizados por Jost Amman. Não há dúvida de que o autor do baralho da Nova Espanha foi influenciado pela literatura simbólica da época, que aproximadamente em 1583 circulava por toda parte.
Os modelos alegóricos europeus
As duas quimeras
1. Quimera      2. Quimera
Figura 1 : A Quimera   e   Figura 2 : A Quimera
As quimeras, conforme Cesare Ripa simbolizam “uma diversidade de vícios e muitas formas”.[14] Em sua representação há uma infinidade de combinações zoomórficas e antropomórficas: cabeças humanas, jubas de leão, seios de mulher, caudas de dragão, corpos de cabra, entre outras formas. Além disso, costumam ser aladas.
O macaco e o íbis
De acordo com a literatura emblemática, o macaco possui o significado oculto da luxúria. Iconograficamente costuma aparecer com um espelho, símbolo da vaidade, pois contempla seu próprio reflexo.[15] No caso do baralho da Nova Espanha, o macaco está acorrentado a alguns baralhos, que simbolizam a ociosidade e constituem “o caldo do cultivo da luxúria”.[16] Os grilhões representam a escravidão do homem pelos seus desejos inferiores e terrenos.
3. Macaco      4. Íbis
Figura 3 : O Macaco   e   Figura 4 : O Íbis
Íbis, uma espécie de pássaro com patas de garça e bico torcido, simboliza a mesquinhez. Este animal que vive nas margens de rios e que mata serpentes ou animais peçonhentos, neste caso um caracol que simboliza a espiral microcósmica em ação sobre a matéria. Ao matar sua presa, sente o veneno em seu ventre e ingere água na qualidade de purgante: daí que depreende o sentido de cobiça como algo sujo do ponto de vista social e moral.
Andrés Alciato afirma que este animal representa o insulto, porque ao comer a isca venenosa, “descobre com sua língua as coisas que estão encobertas pela natureza, e proferem palavras desonestas, pondo sua língua em coisas sujas”.[17] No entanto, esta carta poderia ter tido um significado positivo, pois na simbologia egípcia, o íbis era a encarnação do deus egípcio Thoth, o encarregado de predestinar o futuro; portanto, a presença deste animal era um símbolo de bom augúrio.[18]
Hércules e a caridade
A Caridade, representada por um homem musculoso e forte, carregando um cesto com frutos. Sua atitude de caminhante possivelmente indica o auxilio que deve ser oferecido aos que sofrem sob o poder dos opressores ou inimigos.
5. Hércules     6. A Caridade
Figura 5 : Hércules   e   Figura 6: A Caridade
O cesto de víveres serve para aplacar as calamidades e a fome, pois, de acordo com a literatura emblemática, a fruteira é também um símbolo da caridade.[19]
Hércules, o herói da mitologia, é a personificação do valor e da força física. No baralho da Nova Espanha ele é retratado como um guerreiro musculoso, de constituição sólida e pouca barba, com o cabelo curto e crespo. Porta um escudo e uma lança. Segundo os antigos mitos sua força era tamanha que inclusive matou um leão e por isso sua vestimenta tem a pele desse animal[20].
As figuras femininas
Uma mulher coloca um cabresto no leão que está ao seu lado. Esta cena simboliza a alegoria da força submetida à justiça.[21] De acordo a Giovanni Pierio Valeriano, o leão representa a força e a mulher representa a justiça. Para James Hall, o cabresto significa o controle e, portanto, é um elemento da temperança[22]
Os tarôs tradicionais denominam esta figura como a Força que, graças a sua natureza feminina, possui os meios eficazes para a luta; a mulher conseguiu vencer seus instintos primários, representados pelo leão, antigo símbolo das energias primordiais e para vencê-lo não foi necessário matá-lo. Por isso, suas energias, desejos e imperfeições estão ao seu dispor.
7. A Força     8. O Rapto de  Europa
Figura 7 : A força   e   Figura 8 : O Rapto de Europa
Uma vez que esta figura é um arcano ativo e combativo, conta com a inteligência e a aspiração ao divino. Entretanto, sua sabedoria não é inata, mas adquirida. Esta figura indica a força interior necessária para vencer a si mesmo e as circunstâncias terrenas; outorga vitalidade, saúde física e moral.
A outra figura feminina do tarô da Nova Espanha é a representação do rapto de Europa. De acordo com a mitologia grega, Europa era filha de Agenor, rei de Tiro. Zeus se apaixonou por ela e adotando a aparência de um touro se aproximou da praia onde Europa brincava com suas companheiras. Ao contemplar um touro tão belo, Europa colocou-lhe coroas de flores e sentou-se em seu lombo; imediatamente Zeus fugiu rumo ao mar e levou a jovem para Creta onde, recuperando seu aspecto normal, a fez sua e lhe deu três filhos.[23]
Devido a tal lenda, esta carta poderia simbolizar o impulso arrebatador e as falsas aparências.
O deus Hermes
A última figura alegórica de tradição europeia neste baralho é o Deus Hermes em suas duas representações. Como deus dos Limites ele aparece sentado em um pilar retangular, com a face barbada, cabelo comprido e um torso com braços. Apesar de se apresentar sem o membro viril, o conjunto da figura transmite todas as ressonâncias fálicas que a rigor lhe pertencem. De acordo com a descrição de Alciato, Hermes está sepultado em uma pedra e “acima dela há uma figura cortada na altura do peito e declara que não cede a ninguém. É o limite que representa um obstáculo para os homens. É o dia impossível de mudar e o prazo prefixado pelo destino, em que as últimas coisas lançam o seu julgamento sobre as primeiras”[24]
De acordo a Joss Irish, a civilização egípcia, sob o reinado dos Ptolomeus, identificou Thoth como Hermes, o o inventor das ciências e de todos os segredos guardados nos livros místicos, que foram condensados em um manual das grandes escolas iniciáticas de magia, astronomia, astrologia e tudo aquilo relativo ao mundo esotérico.[25]
9. o Deus Hermes (Término)      10. o Deus Hermes (Silvano)
Figura 9 : O Deus Hermes (Término)   e   Figura 10 : O Deus Hermes (Silvano)
Alguns autores especulam que esta figura poderia ser o do próprio Silvano [deus romano das florestas, similar ao Pã grego], a divindade rural sob o nome de Limite, que delimitava as propriedades e é representado na última carta do tarô da Nova Espanha. Os filósofos o consideravam como um símbolo da matéria, ou seja, o mais vil dos elementos: água, fogo, ar e terra. É igualmente representado, com cabeça e torso de homem, mas sem braços ou corpo, que é substituído pelo resto do fragmento de pedra no qual foi talhado. Silvano é associado aos baixos instintos e a conveniência.
A iconografia americana
As figuras de tipologia americana não seguem uma sequência de pares tão definidas quanto os personagens de iconografia europeia. Pode ser que este documento esteja incompleto e que os pares seriam complementados com as cartas extraviadas. Para a descrição destas cartas decidimos organizá-las de acordo a uma temática coerente e associá-las aos personagens do tarô tradicional, pois as figuras apresentam simbologias herméticas similares. Não devemos esquecer que o tarô é uma tradição viva e, por isso, mais do que uma rígida adesão às convenções, o que se faz necessário é uma interpretação imaginativa das suas regras.
Dois imperadores mexicanos em um baralho da Nova Espanha
Assim como os baralhos europeus, este baralho da Nova Espanha possui seus próprios reis. Trata-se dos dois últimos imperadores mexicas: Moctezuma II e Cuauhtémoc [ou, em grafias mais populares, 'Montezuma' e 'Quatimoc' ou 'Guatimozin']. Estas duas figuras históricas correspondem à tradição dos baralhos de apresentar os imperadores nas cartas e, neste caso, o gravador conseguiu captar o espírito do local onde circulariam os baralhos, com o qual sua difusão seria extensa na America graças ao entendimento dos jogadores, que conheciam de algum modo tais personagens. Não deixa de ser interessante que o gravador tenha considerado necessário identificá-los com seus nomes; possivelmente quis substituir de modo consciente o “Imperador” dos baralhos europeus pela sua figura correspondente indígena e, assim, familiarizar o jogador europeu com ela.
Moctezuma Xocoyotzin foi o nono governante asteca, com o qual findou o esplendor do império. A carta apresenta inscrito seu nome no canto superior direito da seguinte forma: MONTEZVMA. O imperador veste seu xiuhtilmatli ou capa entrelaçada que permite ver sua elegante tanga ou maxtlatl e, também, calça umas cotaras, um tipo de sandália cujas solas, conforme Bernal Díaz, eram de ouro e com ricas joias sobre elas.[26] Em sua cabeça está uma coroa simples afixada atrás, e, além disso, Moctezuma apresentava barba, fato que nas representações plásticas mesoamericanas era um símbolo de sabedoria ['Mesoamérica" é o nome dado à região que vai do Sul do México até partes ocidentais da Nicarágua, Honduras e Costa Rica]. Na mão direita porta um cetro de comando e na mão esquerda ostenta um belo colar de contas que culmina com uma cabeça de animal, semelhante àqueles usados na época pré-hispânica.
11. Montezuma       12. Qvatimoc
Figura 11 : Montezuma   e   Figura 12 : Cuauhtémoc
É importante destacar que os códices pré-cortesianos e as manifestações plásticas pré-colombianas representam seus reis sentados no trono. Neste caso Moctezuma está de pé, o que nos faz pensar na influencia europeia que repercutiu no autor da gravura. O fato de Moctezuma estender a mão com um belo colar nos recorda o instante em que presenteia Hernán Cortés no ato da sua apresentação, tal como é representado no Códice Florentino. Entre suas pernas podemos ver a palavra MEXICO.
A parte superior esquerda da mesma carta ostenta um glifo asteca que representa uma casa (calli) sobre a qual vemos o escudo de Tenochtitlan (Tetl = pedra, nochtli = pera-espinhosa) cujo nome significa “palma que surge da pedra”;[27] sobre as palmas forrageiras, uma águia se inclina para devorar uma serpente, símbolo que evoca a origem da cidade que o deus Huitzilopochtli assinalou para estabelecer a capital do império mexica.[28] O entalhe em sua totalidade simboliza o palácio da cidade de Tenochtitlan, ou seja, o local aonde governava Moctezuma.
A representação de Moctezuma no tarô relembra os personagens dos fragmentos de um códice pintado sobre tecido da Genealogia de la família Mendoza-Moctezuma que se encontra no Museu Nacional de Antropologia e História, e que datam do século XVI ou XVIII.
Cuauhtémoc foi o último imperador do México-Tenochtitlan. Destacou-se como guerreiro e foi sacerdote. Em 1521 sucedeu ao seu tio Cuitláhuac que reinou apenas por um curto período de tempo. Cuauhtémoc realizou a defesa heroica de sua pátria para deter o ataque dos espanhóis. Em 1525 foi acusado de participar de uma suposta conspiração contra a Coroa Espanhola e Cortés ordenou sua morte. Seu nome significava “águia que cai”, animal este representado aos seus pés.
Para facilitar a identificação deste personagem, a carta apresenta seu nome: QVATIMOC. Sentado em seu trono, à moda das representações pré-colombianas, tem o cabelo preso e barba, sustenta o cetro de comando e veste uma indumentária de imperador, seu xiuhtilmatli ou capa atada sob o preito; tem uma coroa na cabeça e calça sandálias.
O entalhe no alto, à direita, representa Chapultepec, quer dizer, o “Cerro del Chapulín” [= "Morro dos Grilos"] ou da Lagosta. Era uma montanha de baixa altura localizada à margem de um lago. Os astecas habitaram o local em 1229 e mais tarde, em 1435, foi espaço de recreação e local memorável para os reis mexicas, que tinham por costume gravar suas efígies nas rochas.
Na Mesoámerica, o imperador era o máximo governante político e ao mesmo tempo a mais alta autoridade religiosa. O significado análogo para o ocidente era o Rei e o Papa, figuras que fazem parte dos personagens do tarô, cuja associação é viável neste caso com Moctezuma e Cuauhtémoc. Os personagens carregam uma coroa, atributo que estabelece uma relação entre os personagens principais e a divindade. O cetro da mão direita simboliza a direção do governo. O laço que ata as duas metades do manto significa a energia que une os opostos e mantém o equilíbrio. O cabelo comprido e a barba simbolizam a inteligência, a experiência e a espiritualidade.
Moctezuma e Cuauhtémoc como imperadores utilizavam a inteligência no plano material e, como os sumos sacerdotes, representam o poder espiritual que recebe a inspiração divina e transmite seus princípios.
O monstro de Tulancigo
Tolanzincal é um personagem deformado que de acordo a frei Juan de Torquemada, nasceu em San Lorenzo, província de Tulancingo, ao redor de 1573: de onde se origina seu nome.[29] O baralho da Nova Espanha apresenta um ser disforme, posto de frente com as pernas abertas, meio flexionadas. Seus traços faciais estão disformes, traz a boca aberta e o cabelo desgrenhado eriçado. O artesão conseguiu definir suas orelhas, o nariz, e os olhos sem sobrancelhas. Um duplo cordão umbilical pressiona seu ventre e os enormes genitais, enquanto seus braços semi flexionados se lançam para cima; a mão direita está aberta, enquanto a esquerda segura um disco decorado com um semicírculo interior, com nove círculos menores; a parte central contêm uma espécie de estrela, dividida em duas por um traço vertical em cujas seções, superior e inferior se localizam três pináculos. Provavelmente se trata de um símbolo diabólico.
Tolanzical
Figura 13 : Tolanzincal
 
Suas pernas apresentam uma faixa abaixo dos joelhos, como se o personagem tivesse sido esfolado, pois muda o sombreado das panturrilhas em contraste com a tonalidade do resto do corpo. Um grilhão está preso na perna direita e mantém o personagem fixo a uma argola colocada no solo.
O Códice Aubin representa Tolanzincal da mesma forma que o baralho da Nova Espanha[30] e cita o frei Juan de Torquemada, que afirma que este personagem era filho de uma índia e o descreve como um “monstro ferocíssimo, cuja imagem foi impressa e levada para a Espanha, causando a todos que a avistavam um grande espanto e temor”.[31] Tolanzincal, um ser disforme, nascido nas Índias em 1573, foi o modelo escolhido para circular em uma carta do tarô da Nova Espanha dez anos após o seu nascimento.
Com ele se desejou representar o que para a literatura emblemática europeia é a perversidade através de um ser disforme, cuja ausência de proporções no seu corpo referem-se aos vícios, pois são perversões da natureza, Cesare Ripa afirma: ”denominamos vício, de fato, qualquer coisa que não se manifesta nos corpos de acordo à sua proporção, tais deformidades servem como meio para simbolizar a natureza viciosa das pessoas”.[32]
Tolanzincal pode ser associado deste modo ao arcano 15 do tarô, quer dizer, à figura do Diabo, por ser esta uma carta emblemática das forças da natureza. O demônio, representante de um principio espiritual penetra na matéria e tenta cobrir-se com ela para se materializar; por isto ele é o impulso dos instintos e o desejo pelas coisas físicas. O monstro de Tulancingo tem um grilhão em uma das pernas, que alude ao homem acorrentado pela natureza que lhe impõe uma parte animal.
Conforme a interpretação de Dicta Y. Francoise, a carta do Diabo atribui o desejo de sobressair e obter fama, é símbolo da vitalidade e da sexualidade exigente. Analogicamente, Tolanzincal, surge esfolado, aspecto físico que possui relação com Xipe-Topec, o deus da renovação da terra, portanto um símbolo de fertilidade.
A carta de Tolanzincal representa o esforço da matéria, da qual o homem é escravo, para conseguir êxito graças aos conselhos da razão ou, então, os fins egoístas o levarão rumo à desgraça.
Jogos, danças e ritos do México antigo
Passamos à descrição das cartas dos baralhos que representam alguns jogos, danças e ritos, que pelo visto são um fiel reflexo dos costumes dos povos da Mesoamérica. Quatro dos indígenas são representados com o nariz trespassado, aspecto que denota sua origem huasteca [= azteca]. O jogo dos  “Voadores” possui suas raízes no litoral do Golfo do México. Da mesma forma a palavra Queztecal registrada em várias cartas, ainda que mal transcrita, situa os personagens como pertencentes a tribo cuextexa, cuja lenda é relatada em um texto náhuatl do Códice Matritense de La Real Academia de La Historia e sua ilustração pode ser apreciada no Códice Florentino.[33] Os informantes de frei Bernandino de Sahagún relatam que Cuextecatl, o chefe de um grupo, se embriagou com cinco copos de pulque e sua tribo herdou seu nome devido ao estado de alegria que possuía a todos, pois de acordo às fontes, “carregam consigo a diversão, as flautas...” tal como observamos na carta número 15. Além disso, “os cuextecas sempre andavam bêbados como se sempre estivessem ingerindo ervas alucinógenas...”[34] do modo como é retratado na carta 14. É curioso que o gravurista, consciente do significado e dos modelos aborígines tenha escolhido esta figura.
A indumentária dos indígenas representados no baralho da Nova Espanha unifica a todos como pertencentes à tribo Cuexteca, tal como descreve frei Gerónimo de Mendieta: ”...usavam braceletes e, nas panturrilhas, tiras de couro; possuíam braceletes de jade e insígnias de quetzal nas costas, insígnias redondas de palma, de penas de aves, leques de plumas...” Igualmente a perfuração do nariz era comum entre eles: ”...com folhas de palma alargavam as perfurações e quando estas já estavam fendidas, introduziam nelas um canudo de ouro ou de bambu, de cujo interior saía ou despontava uma pena vermelha”.[35]
O indígena em estado de transe
Esta carta apresenta um indígena trajado com seu maxtlatl ou tanga, cujas pontas caem uma na frente e outra atrás. Uma manta que passa pelo ombro esquerdo está amarrada ao lado direito da cintura e cobre metade do torso. Traz braceletes nas panturrilhas e um colar no pescoço; sua cabeça exibe dois enormes laços com guizos que lembram as fitas dos bufões medievais. No pulso esquerdo usa um tipo de pulseira da qual pendem plumas e, na mão direita, um caniço do qual emana uma espécie de fumaça.
O personagem chama a atenção por sua atitude dinâmica, que se reflete na posição das pernas, que parecem manter um ritmo como se o indígena, de nariz trespassado, estivesse pulando ao som da música. A seus pés destaca-se um cacto com espinhos. Provavelmente trata-se de um pé de peiote, a planta da qual se extrai uma droga tóxica. Assim, esta cena nos fala de algum ritual associado aos efeitos daquilo que os bailarinos deviam consumir.
Este personagem possui uma associação com o arcano zero do tarô tradicional, isto é, com O Louco, uma pessoa que dá passos errados, que não possui um rumo certo e está perdida.
Tanto o louco como o dançarino, saem em peregrinação errante pelo mundo à procura da verdade. Ambos levam consigo os atributos da dualidade humana e seus instintos não foram dominados ainda. A disposição andarilha dos dois personagens refere-se ao caminho do homem rumo à evolução.
Os guizos estão representados tanto na carta do tarô da Nova Espanha como no arcano Zero do tarô tradicional. Simbolizam a humanidade destes personagens. O ruído produzido por estes objetos os impede de encontrar suas lembranças divinas e os atordoa tanto no plano material como no espiritual.
 
Indígena em transe
Figura 14 : O indígena em estado de transe
Tanto o arcano zero como o indígena andam distraídos sem prestar atenção ao ao caminho que percorrem. O primeiro tende a cair de um penhasco e o último está prestes a pisar no cacto. O efeito da droga elabora suas aspirações espirituais e compreende em si certas coisas, porém é incapaz de realizar uma síntese.
O músico associado à Quetzalcóatl
Outra carta apresenta um indivíduo ricamente ataviado para a festa de Quetzalcótal; o robusto indígena traz na cabeça um gorro cônico com listras negras e uma faixa de chalchihuies ou pedras circulares. Sobre ela pousa uma ave com uma enorme cauda emplumada denominada quetzal.[36] Sua veste, similar à do deus Quetzalcótal, cobre a parte superior do seu corpo e é feita de pele de animal, com lindos bordados. Traz nas costas um enfeite do qual saem penas de ave que, conforme os informantes de Sahagún, devem ser de araras.[37]
O músico associado a Queztecal
Figura 15 : O músico
associado a Quetzalcótal
 
Na panturrilha esquerda mostra uma tornozeleira de guizos e está calçado com sandálias. O personagem toca uma flauta com um caracol, instrumento associado ao deus do vento, Ehécatl, um dos títulos de Quetzalcótal.
Quetzalcótal foi um dos personagens culturais mais complexos do México antigo. Poderia ser considerado como uma divindade criadora do mundo, pois o seu sacrifício originou a vida humana. Outro de seus atributos é o caráter civilizador, rei e sacerdote de Tula, que pregou a paz e a fraternidade universal; durante o seu governo as guerras cairam no esquecimento. Seu irmão Tezcatlipoca induziu-o a pecar, motivo que o fez decidir pelo exílio em sinal de penitência e para a realizar votos de introspecção.
Alguns historiadores consideram que foram vários os personagens que receberam o nome de Quetzalcótal, homens de vida mística, portadores da força do deus e que, portanto, estavam obrigados a viver de forma ritual.
Este personagem de qualidades sobre-humanas pode ser associado ao eremita do tarô, por ser a carta dos buscadores, daqueles que questionam sua própria verdade ou o bem da humanidade. Este arcano representa a vontade e a inteligência, é o super-homem, a criação, a evolução do homem comum que pode atingir o sobrenatural da mesma forma como o fez o homem-deus Quetzalcótal.
O Eremita ilumina o caminho dos homens com sua lanterna enquanto que Quetzalcótal guia com a música aqueles que buscam a verdade. Ambos os personagens simbolizam o encontro consigo mesmo, a sabedoria e a ânsia pelo conhecimento.
O indígena malabarista
A carta seguinte representa um indígena reclinado sobre uma esteira, vestindo calças curtas, usando dois laços com guizos na cabeça, uma argola no pescoço, braceletes e flores nas mãos. Com suas pernas levantadas sustenta uma vara sobre seus pés. A cena representa o que se conhece como “juego del palo”, que conforme relato de frei Gerónimo de Mendieta, foi pouco praticado em algumas festas e aparentemente possuía relação com a região de Huasteca, porque o traje era usado naquela região.[38] A origem azteca do personagem do tarô da Nova Espanha se percebe também pela perfuração do nariz que, como foi citado anteriormente, era uma prática comum entre os habitantes daquela região. Frei Juan de Torquemada referia-se aos malabaristas que exerciam este tipo de diversão como os “Jugadores dos pés” e os comparava ”como existem os de mão e os saltimbancos entre nós, os Castelhanos...” e se admirava ao dizer “...é uma coisa muito interessante de se ver”.[39]
O Códice Florentino representa um indígena na mesma posição em que aparece no baralho da Nova Espanha.[40]
O evento se realizava da seguinte forma: um indígena segurava uma tora roliça sobre seus ombros. Segundo Mendieta:
O acompanhavam outros sete ou oito indígenas fantasiados com as roupas de outra tribo conhecida como guastecos, cantando e dançando como o faziam aqueles, ao som de um atabaque e cercavam o índio que trazia essa tora; este se deitava no chão, com escassa roupa, de costas de lado a lado, e virando os pés contra a cabeça, como uma bateia, e se enroscando, colocava a tora na horizontal sobre seus pés, a qual ficava a poucos centímetros de sua testa e a levantava e jogava para cima e tornava a pegar e a girava e voltava a jogar, fazendo isso trinta vezes e executando outras mil variações, brincando com a tora, como podem fazer nossos jogadores de futebol com uma bola, sem que outras partes do corpo toque ao tora nem a ajude, mas apenas com os pés. E muitas vezes parece que vai cair sobre sua cabeça (e se isso acontecesse afundaria o crânio) e quando menos esperamos estica um pé e o recolhe, e com o outro pé joga-a para cima. E isto dura até quando ele quiser ou até os espectadores se cansarem.”[41]
 
O indígena malabarista
Figura 16 : O indígena malabarisa
O malabarista apresenta uma analogia com o primeiro arcano do tarô, o Mago, pois a imagem evoca uma força ativa e criadora. O significado particular deste personagem está em sua habilidade para executar jogos de malabares com vários objetos, tais como o azteca do baralho da Nova Espanha. Simboliza a manejo das circunstâncias com grande destreza; tem as possibilidades de êxito, tanto as físicas e as vitais, quanto as espirituais. Demonstra uma excelente saúde e um desejo para viver intensamente.
Um macehual levando um nobre às costas
Outra carta do baralho da Nova Espanha retrata um nobre indígena, ricamente ataviado conduzido por um macehual ou servo.
Um macehual carrega um nobre
Figura 17 : Un macehual
leva um nobre às costas
 
Sobressai o contrate das vestimentas entre os dois personagens; o senhor usa um blusão salpicado como se fosse a pele de um animal, braceletes no pulso esquerdo, protetores de orelha, um colar no peito; seu antebraço exibe uma pulseira com guizos e nas mãos há um tipo de chocalho, como se fosse um ramo de flores, comumente utilizado pelos nobres indígenas, tal como pode ser observado no retrato atribuído a Ixtlilxóchtil, que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris.[42] Em torno da sua cabeça traz um coroa de folhas e de suas costas emanam penas de aves, semelhantes a asas. O macehual, entretanto, cobre seu corpo com uma túnica simples e está descalço; carrega nas costas o índio nobre envolto em um Mecapalli, um tipo de tecido que cobre os quadris do seu senhor e é amarrado na parte frontal do servo.
Localizamos três exemplos gráficos em fontes indígenas com a representação de um servo ou tameme que carrega outro personagem nas costas. O primeiro é a Tira de la Peregrinación aonde vários sacerdotes carregam seu deus; outra representação encontra-se na cena do casamento indígena do Códice Matritense, aonde um servo carrega nas costas uma recém-casada, e o terceiro exemplo pode ser encontrado na primeira página do Códice Matritense, onde um servo carrega nas costas um alto mandatário. Nos três casos se trata de um ritual.
Os trajes destes personagens evidenciam a diferença hierárquica e social dos indivíduos, que sugere a comparação com o arcano VII do tarô, O Carro. O simbolismo de ambas as cartas é semelhante; o carro é o veiculo físico do condutor que atua triunfante sobre seus domínios e desfruta da inteligência. No baralho da Nova Espanha, o servo leva às costas o seu amo, isto é, o macehual serve de meio de transporte já que na Mesoamérica não existiam animais de carga.
A mestiçagem de duas festividades: os voadores e os touros
A última figura do baralho da Nova Espanha representa um contexto híbrido de duas culturas: “os voadores” dos rituais indígenas, representados na parte superior da carta, e a festa espanhola dos touros, ao quais se unem na parte inferior.
O preparo para os voadores consistia, de acordo com frei Juan de Torquemada, em trazer uma árvore muito grande e grossa,que os indígenas desfolhavam deixando-a lisa. Na parte superior colocava-se uma espécie de pilão, do qual pendia um "quadro de madeira como se fosse a moldura de uma tela"; em seus quatro cantos eram atadas cordas, como é possível observar na ilustração da carta. Entre o pilão e o quadro de madeira fixavam-se outras cordas bem compridas, nas quais se penduravam quatro indivíduos vestidos adequadamente de diversas figuras com asas, com o intuito de simular o voo natural dos pássaros.
Frei Gerónimo de Mendieta, por sua vez, relata que os personagens fantasiados “voavam desde o alto do mastro, deixando-se deslizar pouco a pouco pelas cordas amarradas na ponta do mastro”.[43] Além dos voadores, subiam ao topo do troco outros oito ou dez indivíduos, ricamente trajados tocando instrumentos musicais, ainda que no caso do baralho da Nova Espanha, observamos apenas três deles. Graças a estes músicos, os voadores podiam executar sua apresentação ao som da música.[44]
O Códice Xólotl traz uma representação diferente dos Voadores que, segundo Torquemada, este ritual estava associado ao culto do "Demônio", isto é, aos antigos ritos indígenas.
Os jogadores executavam treze voltas que, "considerados os quatro cabos e cordas, executavam cinquenta e duas voltas, cabendo a cada um dos quatro que voavam, treze voltas que, multiplicadas quatro, perfaziam o referido número 52”[45], ou seja, um número associado a uma cerimônia de cunho religioso e relacionada a uma data conhecida como "Fogo Novo".
Mais tarde, depois da conquista, o sentido ritual do jogo dos voadores despareceu e perdurou como uma simples diversão, sem importar a quantidade de volta e de cordas. “Isto acontecia em uma praça situada ao lado de um Palácio, denominada desde o período pré-hispânico como "El Volador” (O Voador). Neste mesmo local também se celebravam as corridas de touros desde o século XVI e, deste modo, ocorreu a mestiçagem das duas festividades: a indígena e a espanhola.
De acordo a Torquemada, durante a conquista haviam ressuscitado o jogo e, tanto as corridas de touros como os voadores, tinham em comum o perigo, pois em certas ocasiões vários dançarinos caiam do alto do mastro e morriam, assim como acontecia na lida com os touros. Entretanto, isto não representava qualquer impedimento para continuar com tradição, pois “não é porque um navio se perde no mar, que que outros deixam de navegar”.[46]
 
Os voadores e os touros
Figura 18 : Os voadores e os touros
Desde tempos remotos, o touro é um animal simbólico que contêm os princípios da vida dos homens, dos animais e das plantas, símbolo da procriação e da força. Com o tempo, o sentido religioso de veneração ao touro modificou-se — tal como no caso dos voadores — e surgem as touradas, que é a lida com o touro bravio. Na Espanha converteu-se em espetáculo popular e em festa de caráter nacional. Por isso o sentido literal da carta é a uma fusão de dois festivais, um mesoamericano e outro espanhol.
A correspondência com o arcano 10 do tarô é evidente, ou seja com a Roda da Fortuna, que simboliza a constante evolução, um novo ciclo decorrente de um anterior. No caso da carta do baralho da Nova Espanha é possível relacioná-la com a revolução agrícola; os voadores estavam associados com a fertilidade, pois atraiam a energia do momento da semeadura.
Esta carta apresenta uma constante evolução, a do recomeço após o fracasso. É o arcano próprio dos aventureiros, daqueles que não podem permanecer em um só lugar.
Uma mescla iconográfica
A análise de cada uma das cartas do baralho da Nova Espanha comprova a interposição das figuras que evocam vícios e virtudes. Chama a atenção o fato de relacionar alegorias europeias com figuras americanistas, vinculadas com personagens do tarô tradicional, que no âmago denotam uma atitude hermética.
Para esta pesquisa examinei uma grande quantidade de baralhos dos séculos XV e XVI em diferentes bibliotecas e nenhum deles sugeriu um padrão iconográfico especifico para que o idealizador do baralho da Nova Espanha executasse este baralho de cartas. Vale ressaltar que existem baralhos com figuras mitológicas semelhantes às alegorias europeias representadas nas cartas mexicanas. Assim o documento da Nova Espanha é o resultado do esforço de seu idealizador para introduzir um modelo alegórico local a um padrão iconográfico ocidental.
Os simbolismos presentes no baralho da Nova Espanha correspondem a uma mensagem ideológica e decorativa, que hoje em dia não é identificável à primeira vista. A linguagem esotérica dos naipes introduz o jogador ao mistério. O significado das cartas podia ser acessado através de consulta à literatura emblemática que circulava na Nova Espanha, em diversas fontes literárias e na tradição oral dos indígenas, assim como pela comparações das figuras de um tarô tradicional. A análise do baralho oferece como resultado uma fusão de alegorias mestiças: a indígena e a ocidental.
As figuras alegóricas europeias podem associar-se em pares com símbolos que evocam vícios e virtudes. Os primeiros podem se manifestar sob a representação do par de quimeras, o macaco, o íbis, o rapto de Europa. Por sua vez, Hércules, a Caridade, a Força, Hermes e Término referem-se às virtudes.
Ao nos deter nas oito figuras de iconografia americana, observamos que o par de imperadores astecas denotam uma associação dos reis tradicionais dos baralhos europeus e, assim, os símbolos evocam uma iconografia local que diferencia o baralho da Nova Espanha de outras regiões. Moctezuma e Cuauhtémoc podem ser simultaneamente imperadores e sumos sacerdotes, representantes do poder terreno e espiritual.
O disforme Tolantzincal é uma figura interessante, pois sua presença se encontra registrada em fontes históricas do período colonial. O impressor enfatiza a origem do personagem ao anotar no verso: “Esta figura foi um monstro parido por uma índia do povoado de Tulancingo há dez anos”. E talvez o que mais impressiona é a rapidez com que a imagem deste indivíduo foi difundida.
Em relação à carta dos “voadores”, as duas culturas interagem novamente por meio de festas em comum aos seus locais de origem: de um lado, a autóctone ou pré-hispânica através do mastro com os voadores e, de outro lado, os touros ou o festejo importado da Espanha.
Os demais personagens indígenas denotam sua origem azteca, sua habilidade nos ritos e danças, assim como o estilo que o idealizador do baralho impôs a cada um deles.
Este baralho da Nova Espanha destaca-se porque é um dos poucos testemunhos gráficos de uma iconografia local, própria da Nova Espanha. É interessante notar que em data tão precoce, no século XVI, difundiram-se estes símbolos próprios da cultura indígenas combinados a outras alegorias de tradição ocidental, e assim deram origem a uma mestiçagem hermética.
 
Notas:
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[1]. Ao que parece antes do ano 1.000 dC. os chineses previam o futuro fazendo uso de “dados de papel”. É possível que a partir do século XII os árabes jogassem às cartas, confeccionadas à mão, e desse ponto em diante estas migrassem à Europa, se tornando popular nos séculos XIV e XV, com citações e alusões por parte de poetas e romanceiros, que a elas se remetem com bastante frequência.
[2]. José Ma. Saíns Ferrán, Unos naipes de piel. Madrid, 1971; Virgínia Wayland, Apache playing cards from the  Wayland Collection. Pasadena Cal. H. & V. Wayland, 1972. ; Francisco Fernández del Castillo, Libros y Libreros del siglo XVI. México FCE. 1982, p. 562.
[3]. Leia Francisco de Acocer, Tratado del Juego. Salamanca, Andrea Portinaris, 1559.
[4]. Fray Diego Durán, Historia de las Indias de Nueva España e Islas de la Tierra Firme. México, Porrúa, 1984. liv. J, cap. v, págs. 45-46.
[5]. Fray Juan Bautista, Advertencia para los Confessores de los Naturales. México, Melchor Ocharte, 1600, fol. 31.
[6]. Edroundo O'Gorroan, Guia de las Actos de Cabildo de la Ciudad de México. Siglo XV. México, FCE, 1970. Acta 36
[7]. Joaquín Carda lcazbalceta, Bibliografía mexicana del siglo XVI. México, FCE, 1981, p. 40.
[8]. Mariano Cuevas, Historia de la Nación mexicana, México, Ed. Porrúa, 1940, t. 1, p. 547­549
[9]. R.C. 13-IX-1552, Cfr. por Fabián de Fonseca, op. p. 295.
[10] Sevilha, Arquivo Geral das Índias. Leg. Câmara, 183, n. 1, Ramo 6. A amostra de cartas que acompanham este contrato está na seção de Mapas 'J Planos, México 73. O documento não foi estudado de forma mais completa como merece e foi publicado por Cristóbal Bermúdez Plata: · Contrato para a produção de cartas de baralho na Nova Espanha”, Anuário de Estudos Americanos 2.1945, p. 717-721.
[11] A xilogravura é a gravura em madeira: consiste em gravar uma forma em relevo em uma folha dura de madeira que, ao ser permeada de tinta permite que pressionando num suporte se deixe a imagem desejada.
[12] Cada uma das folhas que acompanham o contrato de Martínez Orteguilla consta de meio baralho, ou seja, de vinte e quatro cartas, organizados desta forma: uma folha contém oito cartas, do 2 ao 9, de paus, umas tantas de copas e o mesmo número de ouros; a outra folha apresenta as cartas restantes, ou seja, cavalos, valetes ases e reis dos quatro naipes e as espadas do 2 ao 9.
[13] María Antonia Colomar Albajar: O jogo de cartas na América Latina: Provas e amostras das cartas mantidas no Arquivo Geral das Índias, em Buena Vista de Índias. Sevilla, 1992,1, n. 5, p. 68.
[14] Cesare Ripa. Iconologia, Madri, AKAL, 1987. t. 1, p. 45.
[15] James Hall: Dicionário de temas simbólicos, Madri, Alianza Editorial, 1974, p. 201.
[16] ibid. p. 159.
[17] Alciato: Emblemas. Edição e comentário de Santiago Sebastián. Madri, AKAL, 1985, p. 122, Emblema LXXXVII.
[18] José Luis Martínez: Dicionário de iconografia e simbologia, Madri, Editorial Taurus, 1984, p. 182.
[19] Ripa, op. cit. t. n. p. 320.
[20] A façanha de Hércules a narra Hesíodo; Teogonia e Ovídio; Metamorfose, cap. IX.
[21] Ripa, op. cit., t. 1, p. 449450.
[22] Hall, op. cit., p. 292.
[23] ibid.. p. 267; Martínez, QP. cit., p. 145-146.
[24] Alciato, op, cit., p. 199-201. Emblema CLVIl.
[25] Joss Irish, El Tarot. La Baraja Profética, México D.F., ROCA, 1985, p. 9.
[26] Bernal Díaz del Castillo, Verdadeira Historia da Conquista da Nova Espanha. Edição fac-símile, México, Instituto Mexicano del Seguro Social, 1974, p. 16].
[27] Antonio Peñaflel, Nomenclatura geográfica do México, México, Fotocomposição do Gabinete do Secretário de Obras Públicas, 1897, p. 255.
[28] Crônica Mexicáyotl, México, Impressão de Universidade, 1949, p. 62-66.
[29] Frei Juan de Torquemada, Monarquia Indígena, México, Editorial Porrúa S.A., 1975. t.l, Iib.n, cap. xxvm p. 647.
[30] Geschíchte der Aztdien. Der codex Aubin und verwandte Dokumente QJ. tellenwerke Aleen Geschíchte Amerikas. Band XIII, Berlín, Mann Verlag, 1981. Walter Lehmann und Gerdt Kutscher, p.19v.
[31] Torquemada, op. dt. t. 1, lib. XXIII, p. 647.
[32] Ripa, op. dI., t. n. p. 204.
[33] Miguel León Portilla, Los huastecos, según los informantes de Sahagún, em estudos de cultura Nahuatl  1965,5. p. 15-29
[34] Ibid., p. 17.
[35] 26. Frei Gerónimo de Mendieta. Historia Eclesiástica Indígena, México, Ed. Porrúa, 1980, p. 407.
[36] Sobre a descrição desta festividade, ver frei Diego Durán, Historia das Índias da Nova Espanha e das Ilhas da Terra Firme. Prepara-a e dá a luz Ángel Ma. Garibay K. México, Editorial Porma S. A., 1984, l. 1, cap. v, pgs. 45-46.
[37] Miguel León-Portilla, Ritos, os sacerdotes, ornamentos dos deuses, México, UNAM, 1958, p.116­9.
[38] Mendieta,op. cit., p. 407. A região Huasteca localizava-se na costa do Golfo do México.
[39] Torquemada, op. cit. v. 1, 1. 11, cap. LXXXVIII, p. 230.
[40] Códice Florentino (ilustrações). Edição fac-símile de Francisco del Paso e Troncoso, Madri, 1905, v. v. lám. XLVIII-M.
[41] Mendieta, op. cit., p. 407.
[42] Manuscrito Boban. lám. 66, 68 Y 69.
[43] Mendieta, op. cit., p. 232.
[44] Torquemada, op. cit, v. 11, p. 305-307.
[45] Ibid. v. JI, 1. x, p. 306.
[46] Ibid., p. 306
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