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15 de outubro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


TAROT - Tarôs e Baralhos
 
TAROT DE MANTEGNA
Por Gisèle Lambert
Tradução e compilação:
Constantino K. Riemma
    
    Os Tarots de Mantegna constituem uma da mais célebres e mais enigmáticas séries de estampas dos primórdios da gravura italiana. Seu título usual é equivocado. De fato, ele nem é um jogo de Tarô, nem uma criação de Mantegna. Seu atrativo artístico e seu interesse iconográfico suscitaram inúmeras pesquisas que levaram, porém, a diferentes atribuições e interpretações muitas vezes contraditórias.
    Esse conjunto de gravuras seduz pelas suas múltiplas facetas. Foi qualificado como jogo didático, jogo enciclopédico, jogo edificante, jogo iniciático, passatempo para as pessoas comuns...
    Composto por cinqüenta estampas numeradas em cifras romanas e arábicas, intituladas num dialeto próximo aos de Veneza e Ferrara, ele está dividido em cinco séries de dez figuras cada. Essas séries são designadas pelas letras E, D, C, B e A. A sucessão das letras, que é oposta à da numeração, estimula o percorrer o conjunto nos dois sentidos.
    Cada série é consagrada a um tema específico.
 
1 a 10 - E:  A hierarquia da sociedade e a condição humana
  E-1: Misero
Mendigo
  E-2: Fameio
Servidor
  E-3: Artixan
Artesão
  E-4: Merchadante
Mercador
  E-5: Zintolomo
Fidalgo
 
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  E-6: Chavalier
Cavaleiro
  E-7: Doxe
Magistrado
  E-8: Re
Rei
  E-9: Imperator
Imperador
  E-10: Papa
Papa
 
 
      Esta primeira série é a mais fácil para interpretar. Trata-se de um desfile hierarquizado de todas as situações sociais às quais o Homem pode alcançar ou que pode conhecer, da mais humildade, a do Mendigo, à mais honorífica, a do representante de Deus sobre a Terra, o Papa.
    Neste grupo de figuras, podemos estabelecer um grande número de relações com as cartas do jogo de Tarot. É o caso do Rei, do Cavaleiro, do Valete, do Imperador e do Papa, que trazem a mesma identidade e o mesmo nome. Quanto ao Misero, corresponde ao Louco do jogo do Tarot. Ambos são personagens errantes, acompanhados de um cachorro que tenta morder suas pernas.
 
    Esta seqüência de estampas da Renascença italiana, que aqui reproduzimos, foi retirada de um exemplar conservado na Biblioteca Nacional da França, sob a forma de Mutus Liber, um Livro Mudo, ou seja, um livro sem texto, com cinqüenta buris realçados a ouro.
    O título de Tarot, comumente dado a esse conjunto, é compreensível. A forma retangular das estampas, sua borda idêntica e regular, a representação de uma figura isolada que se destaca sobre um fundo liso, sem ornamentos, correspondem à figuração dos jogos de cartas. No entanto, entre a quinzena de exemplares conservados, dos quais nove estão completos, nenhum chegou colado a um papel forte ou cartolina. Por outro lado, quatro deles estão montados sob a forma de livro. O propósito do criador desse conjunto não era, por certo, a manipulação freqüente das imagens.
    Qual seria, então, a origem, o sentido e o destino desse "jogo"?
    Trata-se, de fato, de um álbum de imagens que precisa ser decifrado. É necessário um conhecimento aprofundado da cultura medieval e humanista para descobrir a chave dessa mensagem desenhada, traduzida em alegorias, símbolos e atributos de diversas origens. A linguagem da Antiguidade pagã, redescoberta no período da criação desse jogo, mistura-se à linguagem cristã da Idade Média.
 
11 a 20 - D:  As Musas e Apolo
  D-11: Caliope
Calíope
  D-12: Urania
Urânia
  D-13: Terpsicore
Terpsícore
  D-14: Erato
Érato
  D-15: Polimnia
Polímnia
 
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  D-16: Talia
Tália
  D-17: Melpomene
Melpônema
  D-18: Euterpe
Euterpe
  D-19: Clio
Clio
  D-20: Apollo
Apolo
 
 
      As Musas, em número de nove, eram filhas de Júpiter e Mnemósina, deusa da memória. Divindades das montanhas, das folhagens e das águas, elas regulavam a harmonia do mundo.
    Na origem, as Musas não tinham uma atribuição individual bem definida. Só no período romano um papel preciso foi atribuído a cada uma delas. Já no século 15, toda cultura se referia a elas e os humanistas as tornaram figuras familiares na arte. É em Florença, por volta de 1460, que as Musas são representadas pela primeira vez, ao que se sabe, na Biblioteca da Abadia beneditina de Fiesole. A seguir aparecem nos Tarots de Mantegna começando por Calíope, a mais poderosa dentre elas, colocadas sob a dependência de Apolo, o condutor do coro das musas.
    Dois atributos as acompanham (exceto em Tália): um instrumento de música e uma esfera. Eles evocam o conceito pitagórico da música cósmica, que associa as Musas aos coros dos anjos, e os escritos de Plutarco, que localiza as Musas nas esferas planetárias.
    A iconografia do Tarot de Mantegna se difundiu, a seguir, entre os artistas do Renascimento.
 
    Muitos jogos desse período consistiam em ensinamentos cuja revelação era reservada àqueles que se dispusessem a trabalhar sobre os temas. Muitos níveis de leitura podiam ser percebidos de acordo com o grau de conhecimento de cada um.
    Os quatro significados da Escritura, segundo Dante Alighieri, podem ser aplicados como regras fundamentais do jogo: a primeira é literal, a segunda é alegórica, a terceira moral, a quarta anagógica, ou seja, passagem do literal ao místico. Os habituados a esses exercícios do intelecto descobririam todas as sutilezas ocultas. Isso correspondia aos propósitos dos humanistas que pretendiam utilizar uma linguagem visual para transmitir os conhecimentos.
    Vários jogos educativos e edificantes existiam nesse época e alguns deles foram conservados. É provável que o Tarot de Mantegna expresse a visão de um artista com o propósito de traduzir o pensamento de um ou de vários humanistas.
 
21 a 30 - C:  As artes liberais e as ciências
  C-21: Grammatica
Gramática
  C-22: Loica
Lógica
  C-23: Rhetorica
Retórica
  C-24: Geometria
Geometria
  C-25: Aritmetricha
Aritmética
 
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  C-26: Musicha
Música
  C-27: Poesia
Poesia
  C-28: Philosofia
Filosofia
  C-29: Astrologia
Astrologia
  E-30: Theologia
Teologia
 
 
      Na Renascença, a instrução era considerada como iniciação pessoal a uma vida superior. Ela era estruturada de acordo com as Artes liberais, que compreendiam o Trivium, com a Gramática, a Dialética, a Retórica, e o Quadrivium, com a Geometria, a Aritmética, a Música e a Astronomia.
    No Tarot de Mantegna, a série das Artes liberais começa pela Gramática, fundadora dessas disciplinas. Ela se enriquece com a Poesia, exaltada pelos humanistas da Renanscença, com a Filosofia e a Teologia. A Astrologia substitui a Astronomia. Ela constituía, na Idade Média, o fundamento de todas as ciências. O Humanismo lhe deu importância crescente ao afirmar que toda existência dependia do Cosmo.
    A Teologia fecha a série. Ela engloba todas as ciências em razão de sua qualidade divina.
 
    No mesmo espírito do Tarot de Mantegana, grandes conjuntos decorativos de caráter enciclopédico ou edificantes, foram criados nas igrejas e nos palácios. São incontáveis as alegorias, com seus atributos próprios, divisas, emblemas e símbolos. Conhecidos artistas deixaram belos testemunhos: Gioto, que inaugurou esse gênero no início do século 14, com As Virtudes e os Vícios, na Capela da Arena de Pádua, e com as Sete Artes Liberais, na Capela dos Espanhóis de Santa Maria, em Florença. E não faltam exemplos extraordinários entre os quais estão os afrescos do Palácio Schiffanoia, por Borso d'Este (1413-1471); a decoração da Villa Lemmmi, em 1483, por Leonardo da Vinci, com Vênus e suas Sete Ninfas e as Sete Artes Liberais.
    O Templo de Malatesta, em Rimini, decorado por volta de 1450 por Agostino di Duccio, Matteo de Pasti e Francesco Laurana, associam as Virtudes, os Profetas, as Sibilas, as Artes liberais e os signos do Zodíaco e dos Planetas. Os baixos-relevos de Duccio estão estilisticamente muito próximos das figuras dos Tarots de Mantegna, pelos panejamentos e movimentos das figuras.
    
31 a 40 - B:  Os princípios cósmicos e as sete virtudes
  B-31: Iliaco
Gênio da Luz
  B-32: Chronico
Gênio do Tempo
  B-33: Cosmico
Gênio do Mundo
  B-34: Temperancia
Temperança
  B-35: Prudencia
Prudência
 
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  B-36: Forteza
Força
  B-37: Justicia
Justiça
  B-38: Charita
Caridade
  B-39: Speranza
Esperança
  B-40: Fede
 
 
      Esta série associa três Gênios (da Luz, do Tempo e do Mundo) às sete Virtudes tradicionais.
    As alegorias dos Gênios são inteiramente novas e sua iconografia não é encontrada em outras obras. São personagens alados, vestidos de túnicas curtas, num cenário com floresta em miniatura, que ocupa a parte inferior da estampa. As posições dos braços esquerdos e de suas mãos parecem rebuscadas.
    Eles dominam a série das sete Virtudes e lembram a forma simbólica da "Trindade e da corrente dos seres".
    As virtudes Cardinais, a Temperança, a Prudência, a Força e a Justiça têm uma origem muito antiga. A partir do século 14, os artistas incluíram os cânones morais e representaram, igualmente, as virtudes Teologais, a Caridade, a Esperança e a Fé. São conceitos cristãos, citados por São Paulo na primeira Espístola aos Coríntios.
    Três das virtudes cardinais, a Justiça, a Força e a Temperança correspondêm, por designação e semelhança, aos trunfos (arcanos maiores) de mesmo nome do jogo do tarot.
    As três virtudes teologais, a Fé, a Esperança e a Caridade, fazem parte de trunfos preservados do jogo de tarot pintado para Filippo Maria Visconti (+ 1447), em meados do século 15. Elas aparecerão no Minchiate, jogo de tarot florentino de 96 cartas, cuja origem remonta ao início do século 16 e que inclui todas as virtudes.
 
    Desde o século 11 eram estabelecidas relações entre os sete Planetas e as sete Virtudes. Dante Alighieri (1265-1321), por sua vez, colocou os Planetas em correspondência com as Artes liberais, o que significa que o saber corresponde ao sistema astrológico.
    Marsile Ficin, assim escreveu em seu tratado De Vita: "Do mesmo modo que as virtudes de nossa alma são aplicadas a todos os membros do corpo pelo espírito vital, assim também a virtude da alma do mundo – por meio da quinta-essência, que é ativa no corpo do mundo, tal como um espírito vital  – estende-se por todos os seres e suas virtudes penetram principalmente naqueles que mais aspiraram por esse espírito"
 
41 a 50 - A:  Os sete planetas e as esferas
  A-41: Luna
Lua
  A-42: Mercurio
Mercúrio
  A-43: Venus
Vênus
  A-44: Sol
Sol
  A-45: Marte
Marte
 
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  A-46: Jupiter
Júpiter
  A-47: Saturno
Saturno
  A-48: Octava Spera
Oitava Esfera
  A-49: Primo Mobile
Primeiro Móbil
  A-50: Prima Causa
Causa Primeira
 
 
      Os planetas, no mundo ocidental, são identificados com os deuses do panteão greco-romano. Essa identificação se fez lentamente e sua evolução pode ser acompanhada percorrendo Homero, Platão, Cícero, etc.
    A iconografia dos planetas nos Tarots de Mantegna provém de um tratado latino De deorum imaginibus libellus, escrito por um autor anônimo, por volta de 1400, do qual se conservou um exemplar ilustrado com desenhos à pena. Esse manuscrito se inspira em muitas outras obras, entre as quais o Liber imaginum deorom, atribuída ao monge inglês Albericus, que viveu no século 12. Tais imagens dos deuses, compiladas de diversas fontes, ilustram manuscritos franceses, flamengos e italianos e serviram de modelo aos artistas da Renascença.
    Esses deuses, cujos tipos clássicos são alterados, vão pouco a pouco reencontrar alguns aspectos de sua originalidade antiga. O Tarot de Mantegna se inspira em miniaturas e marca uma etapa estilística para o classicismo pelo equilíbrio da composição, o movimento, a elegância das formas, a harmonia das figuras e às vezes pela iconografia.
 
    As tradicionais séries de alegorias de sete figuras – as Sete Virtudes, os Sete Vícios, os Sete Planetas, as Sete Artes liberais, etc – estão presentes em todas as séries do Tarot de Mantegna. Estas, porém, foram ampliadas até dez. Às Artes liberais foram adicionadas a Poesia, a Filosofia e a Teologia; as Virtudes foram associadas aos princípios Cósmicos e, os Planetas, às Esferas. Podemos lembrar que o número 10 é a representação da perfeição, entre os pitagóricas que, aliás, eram numerosos entre os humanistas.
    Um quadro poderá deixar mais claras essas correspondências:
    
  Misero
Fameio
Artixan
Merchadante
Zintilomo
Chavalier
Doxe
   -
Re
Imperator
Papa
Caliope
Urania
Terpsicore
Erato
Polimnia
Talia
Melpomene
   -
Euterpe
Clio
Apollo
Grammatica
Loica
Rhetorica
Geometria
Aritmetricha
Musicha
Poesia
   -
Philosofia
Astrologia
Theologia
Iliaco
Chronico
Cosmico
Temperencia
Prudencia
Forteza
Justicia
   -
Charita
Speranza
Fede
Luna
Mercurio
Venus
Sol
Marte
Jupiter
Saturno
   -
Octava Spera
Primo Mobile
Prima Causa
 
    
    Cada série termina por uma figura divina.
    O quadro pode ser lido em muitos sentidos.
    Dentre as cinqüenta figuras do Tarot de Mantegna, vinte e duas delas evocam as cartas dos tarôs clássicos, tanto pelos nomes, como pela semelhança iconográfica ou significado. O Imperador, o Papa, as três Virtudes Cardeais (Justiça, Força e Temperança), a Lua e o Sol correspondem aos trunfos (arcanos maiores) de mesmo nome. O Rei, o Cavaleiro, o Valete têm a ver com as figuras dos naipes (arcanos menores). Misero, Venus, Marte e Saturno lembram a representação do Louco, da Estrela, do Carro, do Eremita. As gravuras da Prima Causa e de Jupiter ligam-se por significados comuns à carta do Mundo no tarô clássico. Por fim, a quarta Virtude cardinal, a Prudência, e as três teologais – Fé, Esperança e Caridade – aparecem no Minchiate de Florença. Podemos ainda acrescentar a todas essa analogias uma iconografia de certas figuras muito próximas à do jogo de tarô executado para a família Visconti, em 1450: o Rei, o Imperador, o Papa e o Valete.
    Numa visão de conjunto das cinqüenta cartas do Tarot de Mantegna podemos identificar dois percursos possíveis. Um deles é ascendente, que conduz a criatura humana por degraus sucessivos, de um estado mais inferior (Misero) até Deus (Prima Causa). O outro percurso se efetua pela transmissão do poder divino, etapa por etapa, até o homem. É uma realização, um acesso ao sobrenatural mediante a iniciativa individual e o conhecimento.
    Um programa é proposto ao homem. Ele vincula o mundo social ao saber, à religião, à Antiguidade, ao Universo, à Deus. Oferece uma síntese de conhecimentos e de crenças, uma reconciliação das filosofia e das religiões. Integra o Homem nessa rede complexa. O cosmo é representado como um todo animado e coerente, no qual cada parte está em relação com a seguinte e o homem se apresenta como microcosmo do universo. Leonardo da Vinci diria "o homem é o assim modelo do cosmo".
    
  Fonte  
  As gravuras e informações sobre o Tarot de Mantegna foram retiradas de:
Suite d'Estampes de la Renaissance Italiene dite Tarots de Mantegna
ou Jeu du Gouvernement du Monde au Quatrocento, vers 1465.
Garches-França, Éditions Arnaud Seydoux, 1985.
Posfácio de Laure Beumont-Maillet, Diretora do Dep. Estampas da Biblioteca Nacional da França.
Apresentação de História da Arte por Gisèle Lambert, do Conselho de Estampas da BNF.
 
 
  Homenagem a Maria F. de Mello  
  O Clube do Tarô toma a apresentação deste estudo como oportunidade para registrar um duplo agradecimento à Maria F. de Mello, membro do Centro de Educação Transdisciplinar (CETRANS). A Profª colocou à nossa disposição seu exemplar da obra já esgotada, que serviu de base para a presente matéria. Além disso, neste ano de 2007, completam-se 20 anos do primeiro curso aberto, para aprofundamento dos arcanos maiores, oferecido na Capital pela parceria de Maria F. de Mello e Constantino K. Riemma, ela encarregada da bibliografia em inglês e ele, dos estudos em francês. Daquele evento, com encontros semanais que se estenderam por um ano, participaram também convidados experientes nos estudos de linguagens simbólicas, como foi o caso de Júlia Gottschalk, Maria Cristina Goes, Lúcia Lee, Rodrigo Araes Caldas Farias, Sulamita Tabakoff e Valéria de Lima Menezes entre outros.  
fev.07
    
 
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