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28 de março de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


O Hierofante – individuação e empatia
Verbenna Yin
A conexão com o Divino, o sentido maior da vida, o mestre – todos esses significados cabem bem neste arquétipo. Esta carta é geralmente representada por um sacerdote, em alguns tarôs ele é o Papa, aquele que detém um conhecimento acumulado de uma determinada tradição e por isso consegue orientar os outros.
O Papa é o grande pontífice, aquele que faz a ponte entre o homem comum e a Divindade. Nessa conexão entre mundos, questionamos se nossas atitudes e pensamentos estão alinhados com aquele conjunto de crenças e valores em que acreditamos sinceramente, validando os caminhos por onde passamos.
Representando a figura de autoridade que exerce o direcionamento dos demais, o Papa é a carta que nos fala dos aprendizados que chegam a partir do grupo ao qual pertencemos.
O Papa no tarô Visconti Sforza e no de Marseille
O Papa no tarô Visconti Sforza (1450) e no de Marselha (1750)
O arcano 5 é o primeiro onde aparecem outras figuras ao lado do símbolo principal, trazendo a ideia de que aqui se iniciam as primeiras inter-relações com as outras pessoas. Dá pra associar com a idade média das crianças ingressarem na escola, entre 5-6 anos as crianças estão iniciando sua integração no primeiro grupo, desenvolvem amizades e começam a perceber afinidades quando se dão conta que "gostam mais" de determinado amiguinho.
É no grupo que vamos percebendo em nós aquilo que somos; no grupo da escola estão aquelas crianças que brincam das mesmas coisas, assistem o mesmo programa de televisão, curtem o mesmo super-herói e grupos musicais. Começamos entender nós mesmos, enquanto indivíduos, pelo grupo ao qual pertencemos, pois estar naquele grupo vai nos mostrando quais as nossas preferências e reconhecemos o que é importante pra nós e o que não é exatamente nosso.
Levando isso para uma vida adulta e no contexto da época em que o tarot foi popularizado, o equivalente dessa ideia de grupo seria a Igreja, um lugar comum onde todas as pessoas se reuniam para receber orientações e confirmar suas ações como corretas dentro de uma determinada forma de ver o mundo e a vida.
A figura do Papa é essa confirmação de que estamos fazendo o correto, que nossas atitudes são coerentes aos olhos do grupo em que estamos inseridos, que pode ser a família, a escola, o trabalho ou até mesmo a igreja.
Buscar essas afinidades no grupo é natural em nós e muitas vezes é importante se sentir respaldado por uma crença maior, pela "palavra de Deus", para tomar certas decisões. Agir de acordo com uma orientação que já foi testada e organizada por um grupo nos confere uma segurança e nos autoriza a seguir num determinado caminho.
Essa atitude é inicial no processo de individuação, buscamos orientações e autorizações externas como a criança busca o olhar de aprovação dos pais para saber se pode ou não colocar o dedo naquele buraquinho da parede.
Há realmente um momento da vida de todos nós em que é necessário ter essas confirmações de quem é "maior" do que nós e pode nos mostrar o caminho e o passo mais certo. O outro, neste caso, atua como um modelo de comportamento e, ao nos comportarmos de acordo com esse modelo, automaticamente nos sentimos autorizados a realizar.
Na psicanálise, a identificação é um mecanismo de defesa do Ego. Na construção da sua personalidade, o indivíduo vai buscando as situações que mais promovam nele a segurança para sobreviver e se desenvolver. A identificação é um modo primitivo de constituição do sujeito que, ao incorporar o modelo dado pelo outro, vai assegurar que sua própria identidade seja preservada.
Freud aborda o mecanismo da identificação nos primeiros vínculos da criança com sua família, colocando o pai como modelo (pai = papa) e vendo a identificação como processo preparatório para a formação do Complexo de Édipo - que para o pai da psicanálise seria o evento psíquico determinante na construção da personalidade de todos nós. Segundo ele, na identificação há um empenho em moldar o próprio Ego de acordo com as características do indivíduo que foi tomado como modelo.
É dessa forma que nos sentimos parte da nossa família de origem, vamos reproduzindo os padrões e crenças familiares e carregamos o brasão dos nomes paternos ao longo da vida, repetindo as características da família na nossa vida também.
O Papa-Hierofante nos tarôs Fenestra e Waite
O Hierofante (Papa, Sumo Sacerdote) no Fenestra Tarot (2006) e no Rider-Waite (1910)
Quem nunca ouviu que italiano fala alto? Pois saber que a família tem ascendência italiana pode autorizar uma pessoa que realmente fala alto a continuar falando alto, afinal, ela pertence aquele grupo que fala alto. Será que todos os italianos falam alto, ou será que existe uma relação entre aquela terra e o volume de voz? Talvez não, talvez sim, quem sabe... Mas acreditar que todo italiano fala alto é uma forma de preservar aquela característica em alguém, para que ele se permita ser.
Daí por diante, vamos mantendo essas identificações onde podemos nos encaixar para justificar aquilo que somos ou que damos conta de ser. E, assim, participar do grupo vai nos dando um sentido e um direcionamento, passamos a valorizar aquilo que é importante para o grupo e isso vai nos conferindo valor também.
Mas o que acontece quando nos encaixamos num modelo que não corresponde exatamente à nossa essência? O esforço de nos encaixarmos num molde que não atende o nosso formato causa muita tensão: se por um lado buscamos a identificação com um modelo do caminho para construção da nossa própria identidade, ao percebermos no mundo externo a não aceitação, a hostilidade, a tendência é nos tornarmos igualmente intolerantes - conosco e com os outros.
Alguns anos mais tarde a psicanálise vai abordar o ambiente da família de origem como experiência fundante de uma percepção ética da condição humana. Donald W. Winnicott afirma que uma criança suficientemente cuidada tem condições de pressentir no seu ambiente as condições que permitirão a ela formular, por si mesma, uma relação ética com o mundo externo a partir da sensibilização com as necessidades de cada um e do respeito mútuo.
No grupo familiar, esses valores são estruturantes da personalidade e vão resultar num desenvolvimento psíquico saudável que, por sua vez, permitirá ao indivíduo se relacionar com as pessoas de fora do seu grupo de uma forma colaborativa e mais tolerante com as diferenças.
E se a um primeiro momento nossa sobrevivência e desenvolvimento saudáveis dependeram da qualidade ética do nosso ambiente familiar, ao longo da vida nós vamos criando laços com outros grupos que também nos representem.
Conforme vamos avançando no processo de amadurecimento na vida, vamos percebendo que nem sempre estamos inseridos nos grupos que comungam da mesma visão de mundo e precisamos encontrar outros coletivos onde nos sintamos acolhidos para continuar nosso desenvolvimento pessoal.
E aqui reside a chave do arcano do Hierofante: ele nos apresenta à sensação do pertencimento que é o elemento primordial na construção da noção do coletivo. Por isso é a primeira carta do tarot com mais de uma pessoa, é a base para uma relação com o outro para além do nosso grupo familiar.
A sensação de pertencimento, quando genuína, permite que o indivíduo se expresse de forma natural e espontânea no seu grupo familiar e aja de forma coerente com o que ele entende ser a sua verdade - seu verdadeiro Self. Quando o ambiente familiar de origem permite isso, a pessoa não se sente ameaçada por ser quem ela é e ela não vai sentir nenhuma necessidade de se ajustar ou de modificar aspectos seus para se encaixar no grupo. Ao pertencer, não há a tensão da ameaça ao seu jeito de ser ou dos ajustes de encaixe. Ao contrário, ao pertencer existe acolhimento e liberdade para ser.
Assim, quando nossa relação com o grupo de origem é suficientemente satisfatória, temos condições de lidar com as outras pessoas que chegam à nossa vida dessa mesma forma, exercitando a tolerância e aceitação com o outro e resultando numa atitude mais colaborativa na vida em comunidade - que vai se ampliando depois para as noções de cidadania e constituição do Estado de Direito como proposto por Winnicott.
Nesse sentido talvez a ideia da manifestação do divino em nós contida nessa carta, ao sermos autênticos de alguma forma assumimos o lugar que outrora era ocupado apenas pelo sacerdote enquanto representante do divino na Terra. Nossa autenticidade seria a chave para manifestar o divino em cada um.
Porém, no estudo do Hierofante eu gosto muito da imagem proposta no Tarot Mitológico, um trabalho incrível da astróloga Liz Greene em coautoria com Juliet Sharman-Burke, que reúne arquétipos e mitos de uma forma muito inspiradora.
O Hierofante-Papa nos tarôs Crowley e Mitológico
O Hierofante no tarô de Thoth-Crowley (1978) e no Mitológico (1986)
Ela propõe a figura de Quíron como o orientador, no lugar do Papa, pois na mitologia Quíron era um centauro muito sábio que ficava a cargo de educar os filhos dos Deuses. Porém, certa feita o centauro foi ferido por uma flecha envenenada e, mesmo com todo o seu conhecimento, não era possível curar-se da ferida que lhe causava contínua dor.
Quíron representa aqui não só a figura do orientador, por deter o conhecimento e passá-lo adiante ensinando o grupo, mas por ter sido ferido e sua lesão nunca cicatrizar, a dor que ele sentia fazia com que ele experimentasse diariamente o sofrimento. Apesar de conviver com os Deuses, esse sofrer o colocava em contato com a natureza humana e assim Quíron podia ter empatia com os filhos humanos dos Deuses, compreendê-los para poder ensiná-los.
Na simbologia de Quiron é que pra mim acontece o grande aprendizado desta carta. Para além das identificações e formações da personalidade, o que eu vejo neste arcano é a empatia. Estar no grupo não só nos confere uma noção de identidade e pertencimento, como também viver em coletividade nos permite desenvolver esse atributo humano tão importante que é a empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro.
É na empatia que permitimos que a conexão com o outro se estabeleça. Se por um momento nos aproximamos do outro por conta das identificações, é com a empatia que consolidamos o vínculo. Porque, se ficar apenas na identificação, a minha conexão com o outro vai passar pelo filtro daquilo que eu acredito no momento e se a pessoa não atender aos valores daquele filtro eu não me identifico com ela, não a tolero e não a considero uma igual. Ela não pertence.
E daí que vamos taxando o diferente como errado, feio e inadequado e vamos abrindo a porta para preconceitos e discriminações que separam as pessoas. Criamos um mundo de segregações onde classifico as pessoas e valorizo apenas aquelas que penso serem iguais a mim, abrindo uma categoria inferior onde ficam todas aquelas outras pessoas diferentes. Não é coincidência que os fundamentalismos se justifiquem na figura de um líder supremo, o Hierofante em sua forma negativa encarna essa confluência de valores excludentes a quem não se encaixa no grupo.
O arcano do Hierofante nos alerta para não nos investirmos nessa falsa valorização de nós mesmos, caindo na armadilha dos complexos de superioridade ou inferioridade quando não conseguimos lidar com a "ameaça" que o diferente traz.
Só com a empatia é que podemos restabelecer uma convivência com os outros que permita que as conexões se formem independente de qualquer filtro ou segregação, ligando-nos verdadeiramente e conferindo um real sentido de pertencimento. Nesse ambiente seguro de acolhimento é que será possível o desenvolvimento pessoal e a elevação da consciência de forma positiva para o indivíduo e para o grupo onde estiver inserido.
Quando a carta do Hierofante sai numa leitura, é o momento de revisar se nossas crenças e atitudes são coerentes ou se precisamos fazer um alinhamento entre pensar e fazer. Pode ser também que chegou aquele momento na vida em que temos que procurar um grupo que realmente reflita aquilo em que acreditamos, ou ainda nos darmos conta de que para crescer precisamos ser mais tolerantes e trazer a empatia para nosso dia a dia.
 
Verbenna Yin é taróloga, astróloga e terapeuta floral.
Contatos: verbennatarot@gmail.com
e www.verbennayin.blogspot.com
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Edição: CKR – 5/01/2018
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