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15 de outubro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Canção dos Caminhos. Os arcanos de Cecília Meireles
 
Poemas 12 a 22
   
 
 
 
 
 
 
 
 
  HERANÇA
 
12. O Pendurado
12. O Pendurado no Tarot de Marselha
 

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos
            infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos
            infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,que experiência, ou consolo,
            ou prêmio alcançarão?

 
 
 
 
 
 
 
 
  O RESSUSCITANTE
 
13. A Morte
13. A Morte no Tarot de Marselha
 

                       A Ester de Cáceres

Meus pés, minhas mãos,
meu rosto, meu flanco,
– fogo de papoulas!
E hoje, lírio branco!

Pela minha boca,
por minhas olheiras,
– arroios partidos!
E hoje, albas inteiras!

Eu era o guardado
de sinistras covas!
E hoje visto nuvens
cândidas e novas!

Vi apodrecendo,
com dor, sem lamento,
meu corpo, meu sonho
e meu pensamento !

E hoje, sou levado
por entre as caídas
coisas, – transparente!
(Aroma sem nardo!
Fuga sem violência!)

E de cada lado
choram doloridas
mãos de antiga gente.

 
 
 
 
 
 
 
 
  A MULHER E A TARDE
 
14. Temperança
14. A Temperança no Tarot de Marselha
 

O denso lago e a terra de ouro:
até hoje penso nessa luz vermelha
envolvendo a tarde de um lado e de outro.
E nas verdes ramas, com chuvas guardadas,
e em nuvens beijando os azuis e os roxos.
Perguntava a sombra: “Quem há pelo teu
            rosto?”
“Que há pelos teus olhos?” – a água
            perguntava.
E eu pisando a estrada, e eu pisando
            a estrada,
vendo o lago denso, vendo a terra de ouro,
com pingos de chuva numa luz vermelha…
E eu não respondendo nada.

Sonho muito, falo pouco.
Tudo são riscos de louco
e estrelas da madrugada…
 
 
 
 
 
 
 
 
  GARGALHADA
 
15. O Diabo
15. O Diabo no Tarot de Marselha
 
HOMEM vulgar! Homem de coração
            mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore
            baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar
            cristais,
 

vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpolas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
– e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...
Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
  DISCURSO
 
16. A Torre
16. A Torre no Tarot de Marselha
 

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do
            meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram
            e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma
            trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

 

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

 
 
 
 
 
 
 
 
 
  SEREIA
 
17. A Estrela
17. A Estrela no Tarot de Marselha
 

LINDA é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
-- quem os pode enxugar
devagarzinho com a boca,
ai!
com a boca, devagarzinho...

Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
possuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios...

Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...

Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.
 
 
 
 
 
 
 
 
  ECO
 
18. A Lua
18. A Lua  no Tarot de Marselha
 

Alta noite, o pobre animal aparece no morro,
            em silêncio.
O capim se inclina entre os errantes vaga-lumes;
Pequenas asas de perfume saem de coisas
            invisíveis:
No chão, branco de lua, ele prega e desprega
            as patas, com sombra.

Prega, desprega e pára.
Deve ser água, o que brilha como estrela, na terra plácida.
Serão jóias perdidas, que a lua apanha em sua mão?
Ah!... não é isso...

 

E alta noite, pelo morro em silêncio, desce o pobre animal sozinho.

Em cima, vai ficando o céu. Tão grande. Claro. Liso.
Ao longe, desponta o mar, depois das areias espessas.
As casas fechadas esfriam, esfriam as folhas das árvores.
As pedras estão como muitos mortos: ao lado um do outro, mas
            estranhos.
E ele pára, e vira a cabeça. E mira com seus olhos de homem.
Não é nada disso, porém...

Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal, em silêncio.
Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se alternam.
Não existe horizonte. A água se acaba em tênue espuma.

Não é isso! Não é isso!
Não é a água perdida, a lua andante, a areia exposta...
E o animal se levanta e ergue a cabeça, e late... late...

E o eco responde.

Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na noite.
Ah! Para aquele lado apressa o passo, em busca do eco.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
  CANÇÃO
 
19. O Sol
19. O Sol no Tarot de Marselha
 

No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.

E no planeta um jardim,
e no jardim um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
  REINVENÇÃO
 
20. Julgamento
20. O Julgamento  no Tarot de Marselha
 

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só – no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só – na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível
reinventada.
 
 
 
 
 
 
 
 
  DEUS DANÇA
 
21. O Mundo
21. O Mundo no Tarot de Marselha
 

SEUS curvos pés em movimento
eram luas crescentes de ouro
sobre nuvens correndo ao vento.

Como no jogos malabares,
ele atirava o seu tesouro
e apanhava-o com a mão nos ares...

Era o seu tesouro de estrelas,
de planetas, de mundos, de almas...
Ele atirava-o rindo pelas

Imensidões sem horizontes:
tinha todo o espaço nas palmas
e o zodíaco em torno a fronte.

Eu o vi dançando, ardente e mudo,
a dança cósmica do Encanto.
Unicamente abismo – tudo

quanto no seu cenário existe!
Que vale o que valia tanto?
Eu o vi dançando e fiquei triste...”

 
 
 
 
 
 
 
 
  CANÇÃO DO CAMINHO
 
0 ou 22. O Louco
0 ou 22. O Louco no Tarot de Marselha
 

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
– Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
– tão perto! –
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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