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26 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


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René Guénon: um homem simples
Antônio Carlos Carvalho
tradutor de A Crise do Mundo Moderno
    
    “Não estamos dispostos a nos deixar encerrar em qualquer dos limites comuns e seria completamente inútil tentar nos aplicar uma etiqueta qualquer, porque entre aquelas que circulam no Mundo ocidental não existe nenhuma que realmente nos convenha”.
    Se ainda houvesse dúvidas a esse respeito, elas teriam que se desfazer com as palavras acima transcritas – é o próprio René Guénon quem nos dá a indicação de que não é possível defini‑lo através das designações habituais na galeria convencional de tipos da chamada “cultura ocidental”. Efetivamente, Guénon não foi “escritor”, nem “pensador”, nem “filósofo”, nem “sábio”, nem “orientalista”, nem “historiador”, nem “sociólogo”, nem “esoterista”, muito menos “ocultista”.
    Quando muito, o Islã, religião que abraçou, possui uma expressão que pode de certo modo se aplicar a ele: “sheikh”, que significa “mestre espiritual”. Mas devemos ter cuidado: Guénon nos adverte igualmente de que “não temos discípulos, nunca tivemos e nunca os teremos".
    O que não impede que ele seja hoje considerado por nós como o guia indispensável para não nos perdermos no meio da escuridão cada vez mais cerrada à nossa volta. E é muito significativo que o seu nome não conste das enciclopédias, dos manuais ou dos discursos universitários, que ele não seja o mentor de nenhuma “revolução cultural”: é que Guénon nada tem a ver com a pseudo‑sabedoria, a ignorância institucionalizada de que o Mundo Moderno tanto se orgulha. Guénon não cabe dentro do Sistema, não é sequer susceptível de ser recuperado por ele. E por isso é oficialmente ignorado, como se nunca tivesse existido...
    Mas existiu. E dessa existência vamos aqui fazer breve resumo, seguindo e socorrendo‑nos da fundamental obra de Paul Chacornac, "La vie simple de René Guénon".
 
Guénon, jovem.
    René‑Jean‑Marie‑Joseph Guénon nasceu em Blois, França, no dia 15 de Novembro de 1886. Logo a seguir ao nascimento verificou‑se que a sua saúde era frágil e continuou sempre delicada, dando grandes cuidados aos seus familiares.
     Aos 12 anos entrou para uma escola dirigida por padres seculares, tornando‑se rapidamente aluno brilhante. Mas a sua saúde sempre incerta o impedia de seguir regularmente os cursos. Aluno de Matemáticas elementares em 1904, mostrou logo reais aptidões para esse ramo do saber universitário, pelo que alguns professores o convenceram a prosseguir os estudos de Matemática em Paris. E, assim, em Outubro de 1904, Rapé Guénon seguiu para a capital, entrando no colégio Rollin como aluno de Matemáticas especiais. Aí, novamente, os problemas de saúde o impediram de acompanhar regularmente os cursos. E foi esse ambiente que determinou o fim dos seus estudos universitários.
    Por outro lado, tendo começado por alugar um quarto no Quartier Latin, a turbulência própria dos estudantes não podia ser aliciante para alguém que amava, acima de tudo, a calma e a tranqüilidade. Assim, procurou um lugar mais repousante e encontrou‑o na ilha de São Luis. Nesse lugar, em pleno coração de Paris, longe da multidão mas perto de Notre‑Dame, poderia, a partir de então, viver a sua vida inteiramente dedicada ao estudo.
     Nessa altura entrou em contacto com a chamada Escola Hermética de Papus. Gérard Encausse, que usava o pseudônimo de “Papus”, era então o chefe incontestável do movimento ocultista, dirigindo o grupo independente de estudas esotéricos, de que dependia a Escola Hermética, freqüentada por numeroso público.
René Guénon
       René Guénon, levado a essa Escola por um dos seus amigos, foi admitido em todas as organizações que se agrupavam à volta daquele movimento. Tudo se passou, então, como se Guénon tivesse que “experimentar” a eventual seriedade dessas organizações, para poder, depois, ajuizar da sua importância. Entrou para a Ordem Martinista, que pretendia ter como origem uma transmissão regular da antiga Ordem dos Eleitos Cohens, fundada no séc. XIX por Martinès de Pasqually. Aí alcançou o último dos graus (“Superior Desconhecido”) e tomou conhecimento dos documentos da Ordem.
    A seguir, foi recebido em duas obediências maçônicas que tinham relações de amizade com a Ordem Martinista: a Loja Simbólica Humanidad nº 240, do Rito Nacional Espanhol, e o Capítulo e Templo "INRI", do Rito Primitivo e Original Swendenborguiano.
    Nesta última obediência recebeu de Theodore Reuss, Grão‑Mestre do Grande Oriente e Soberano Santuário do Império da Alemanha, o cordão de seda negra de Kadosch.
    No Congresso Espiritualista Maçônico de 1908, René Guénon esteve presente como secretário da mesa. Mas abandonou o Congresso, logo após a sessão de abertura, chocado com uma frase do discurso de Papus: “As sociedades futuras serão transformadas pela certeza de duas verdades fundamentais do Espiritualismo: a sobrevivência e a reencarnação”.
 
 
    No decurso deste Congresso, Guénon encontrou Fabre des Essarts, que, com o nome de “Synesius”, era o patriarca da Igreja Gnóstica, e solicitou‑lhe a sua admissão.
    Por outro lado, foi criado no Templo do Rito Misto do Direito Humano um Soberano Grande‑Conselho do Rito de Mênfis‑Misraim para a França e suas dependências, tendo‑se a Loja Humanidad tornado Loja‑Mãe para esse Rito. Guénon recebeu nele a patente do 30°‑90° grau.
    Uma vez do lado de dentro dessas organizações (que se apresentavam todas com caráter mais ou menos secreto e, portanto, para as conhecer, era mesmo necessário ser admitido no seu interior) e verificando que o “Ocultismo” não detinha qualquer ensinamento que se pudesse tomar como sério, encaminhando os seus adeptos para um falso espiritualismo desprovido de qualquer base tradicional, René Guénon pensou então em reagrupar os elementos humanos mais interessante dessas organizações.
    Precisamente em 1908 surgiu a oportunidade de fundar uma “Ordem do Templo” renovada, compreendendo sete graus. Esta “Ordem”, de existência efêmera, esteve na origem da ruptura entre Guénon e Papus; efetivamente, este expulsou‑o de diversas urbanizações sob o seu controlo. Guénon foi então admitido na Loja “Thébah”, de obediência da Grande Loja de França, Rito Escocês Antigo e Aceite. Aí permaneceu até 1914, data em que a guerra obrigou as Lojas a “adormecer”.Mas voltemos um pouco atrás, a 1909, e à admissão de Guénon na Igreja Gnóstica, onde foi consagrado “bispo” por “Synésius”, adaptado o nome iniciático “Palingenius” (a primeira parte deste nome grego significa “que renasce”, equivalente da significação do seu nome René, renato”).
    No interior desse grupo encontrou Léon Champrenaud e Albert de Pouvourville (mais conhecido pelo seu nome de iniciado no Taoísmo, “Matgioi", autor de “La Voie Metaphysique” e “La Voie Rationnelle”, e que iria exercer influência importante sobre o futuro autor de A Crise do Mundo Moderno).
 
Uma das traduções brasilerias
    Quando Guénon fundou a revista “La Gnose”, em Novembro de 1909, inicialmente como “órgão oficial da Igreja Gnóstica Universal”, Champrenaud e Pouvourville deram‑lhe a sua colaboração e apoio para que a revista se consagrasse ao estudo das ciências esotéricas e, em particular, às tradições orientais.
    Foi nessa revista que se publicou o primeiro texto de Guénon, intitulado “O Demiurgo”, e que demonstrava já vasto conhecimento da tradição hindu. O principal redator de “La Gnose" foi, afinal, Guénon, que publicou nessas páginas a primeira redação de uma grande parte de “O simbolismo da Cruz”, a parte essencial de “O homem e o seu devir segundo o Vedanta”, numerosos artigos depois refundidos em “Princípios do cálculo infinitesimal” e vários artigos acerca da Maçonaria. A revista deixou de circular em fevereiro de 1912.
    Tudo o que Guénon publicou nessa revista denotava já um conhecimento seguro da metafísica vedântica. Esse conhecimento, assim como o das doutrinas islâmica e taoista, tinha sido adquirido, sabemos hoje, por transmissão oral ocorrida por volta de 1908 (“nenhuma tradução ‘chegou ao nosso conhecimento’ através de ‘escritores’, sobretudo ocidentais e modernos”). Desconhecemos a identidade do seu mestre ou mestres hindus; sabemos, no entanto, que o conhecimento do Taoísmo lhe chegou por via de Matgioi e o do Esoterismo islâmico por meio de Abdul Hadi (nome islâmico de John Gustaf Agelii, também conhecido pelo seu nome de artista plástico, Ivan Aguéli).
      Em 1912 Guénon casa (religiosamente) com Berthe Loury. Nesse mesmo ano liga‑se efetivamente à tradição islâmica e há todos os motivos para pensar que teria, pouco depois, recebido a iniciação do “sheikh” Elish El‑Kebir por intermédio de Abdul Hadi.
    Dispensado do serviço militar, durante a Grande Guerra, devido à sua fraca saúde, mas necessitando de enfrentar as necessidades materiais, foi obrigado a trabalhar como professor do ensino particular em diversos colégios.
    Em 1917 foi nomeado professor de Filosofia na Argélia, em Setif. Este período de vida na Argélia serviu naturalmente para aperfeiçoar os seus conhecimentos de língua árabe e estabelecer contactos com certos mestres e meios espirituais islâmicos.
    Em 1918 regressa à França e em 1919 passa a residir novamente em Paris, onde prosseguirá nos seus estudos, preparando, ao mesmo tempo, alguns dos livros que depois irá publicar.
    E o primeiro surge em 1921, “Introduction générale à l'étude des doctrines hindoues” (Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus), obra que apresentava noções que antes de Guénon nunca tinham sido explicadas publicamente e, por outro lado, corrigia erros e visões deformadas dos chamados “orientalistas”.    Ainda em 1921 começou a publicar, na “Revue de Philosophie”, uma série de artigos sobre a história e as “doutrinas” da Sociedade Teosófica. Esses artigos foram depois desenvolvidos em “Le Théosophisme, histoire d'une pseudo‑religion” (O Teosofismo, história de uma pseudo‑religião), livro cuja idéia lhe foi sugerida por hindus que forneceram, aliás, uma parte da documentação ali apresentada.
    A terceira obra surgiu em 1923, “L'erreur spirite” (O erro espírita), constituindo uma espécie de complemento de "Le Théosophisme" na tarefa de desfazer a confusão mental dos nossos contemporâneas. Mas enquanto “Le Théosophisme” é essencialmente um trabalho de caráter histórico e crítico, “L'erreur spirite” inclui exposições doutrinais até então inéditas acerca de questões metafísicas e relacionadas com o mundo subtil.
 
 
 
    A partir de 1924 e até 1929 deu aulas de Filosofia num colégio particular. Nesse meio tempo, publicou “Orient et Occident” (Oriente e Ocidente), obra que recebeu reações diferentes, umas de franco desagrado (acusando Guénon de ser “agente” do célebre “perigo amarelo”), outras de aplauso (como a de Léon Daudet, que encontrou neste livro algo mais do que um eco do seu “Le stupide XIXème Siècle”).
    De 1925 a 1927 publicou numerosos artigos sobre o simbolismo cristão na revista “Regnabit”, por intermédio de Louis Charbonneau‑Lassay, autor de “Le bestiaire du Christ”. A sua colaboração nessa revista cessará devido à hostilidade que lhe era manifestada por certos meios neo‑escolásticos. Ainda em 1925 publica “L'homme et son devenir selon le Vedanta” (O homem e o seu devir segundo o Vedanta), de que um embrião tinha já surgido em “La Gnose”, em 1911.
    Seguiu‑se “L'ésotérisme de Dante”.    
No final desse mesma ano, 1925, Guénon deu na Sorbonne a única conferência pública da sua vida – o tema escolhido foi “La Métaphysique orientale”, ou seja, de certo modo, a essência de “Introduction générale à l'étude des doctrines hindoues”, “L'homme et son devenir selon le Vedanta” e de “Orient et Occident”.
    Chegou, depois, a ocasião de retomar um tema já abordada por Ferdinand Ossendowski em “Bêtes, hommes et dieux” e por Saint‑Yves d'Alveydre em “Mission de l'Inde” – tratava‑se do tema do reino de Agarttha.
    E assim apareceu, em 1927, “Le Roi du Monde” (O Rei do Mundo). Este livro teria sido o causador direto da modificação das relações entre Guénon e certos representantes da tradição hindu, por terem estes considerado que os ensinamentos dados nesse texto seriam demasiado precisos.
 
Edição portuguesa
    Surgiu também em 1927 o livro “La crise du monde moderne” (A Crise do Mundo Moderno). Gonzague Truc, historiador, escritor, crítico literário e amigo de Guénon conta‑nos como surgiu este texto: “Posso reivindicar, a respeito deste livro, uma espécie de paternidade ocasional.
    A idéia nasceu no decurso das minhas conversas com o autor. Ambos estávamos de acordo, eu talvez mais indiretamente, ele com uma justeza ou uma justiça mais profunda e implacável, na execração deste “Mundo Moderno" que, com estúpido orgulho, cada dia avançava mais no seu enterro e em que o espírito parecia definitivamente sepultado pela miséria e pelo número. Eu dizia‑lhe: “Faça alguma coisa acerca disso”. E ele fez esta obra de inspiração, muito rapidamente”.
     Em janeiro de 1928 morreu a sua mulher e essa perda constituiu para ele grande desgosto. Um amigo da família dá‑nos impressões desse período: “Guénon, que acaba de perder a sua mulher, é um farrapo humano. O gênio bom da sua vida de todos os dias, admirável e modesta companheira, desapareceu... Volto a ver Guénon 8 dias depois... e imediatamente ele principia uma conversa sobre temas filosóficos e metafísicos... Ei‑lo sozinho.
    Sempre os dois Guénon: desencorajado durante uma certa crise e quase logo de seguida preocupado com o seu novo livro”.

    De fato, a consciência da sua missão acabou, naturalmente, por se sobrepor ao desgosto sofrido.
    Dedicou‑se então a transformar a revista “Le Voile d'Isis” no que viriam a ser os importantes “Études Traditionelles” (título que assumiria em 1933 e que se mantém até hoje).
      Guénon, Frithjof Schuon, André Préau, René Allar, entre outros, colaboraram na primeira fase de renovação dessa revista de caráter espiritual, na qual Guénon encontraria o órgão ideal para poder, durante vinte anos, travar o seu combate incessante contra as idéias anti‑tradicionais.
    O choque ocorrido entre o movimento da “Action Française” e o Papa Pio XI constituiu a ocasião ideal para definir a doutrina tradicional respeitante às relações entre a autoridade espiritual e o poder temporal, o que fez num livro intitulado precisamente “Autorité spiritu­elle et pouvoir temporel”, publicado em 1929. Entretanto, em 1927 tinha escrito um pequeno opúsculo dedicado à figura de São Bernardo, exemplo de alta personagem da Idade Média que tinha pretendido unificar os dois poderes através da criação da Ordem do Templo.
    E em 1929 travou conhecimento com alguém que iria proporcionar uma mudança decisiva na sua vida: Marie W. Shillito, filha do “rei” das estradas de ferro canadenses, viúva de um engenheiro egípcio, Hassan Farid Dina; tanto ela como o marido, enquanto foi vivo, colocaram a fortuna do casal ao serviço da investigação científica e de outros tipos de investigação. Ora nesse ano de 1929 “madame” Dina e René Guénon encontraram‑se no pequeno escritório do Quai Saint‑Michel, sede da revista “Le Voile d'Isis”, tendo a srª Dina manifestado grande interesse pelos trabalhos do autor de A Crise do Mundo Moderno. Esse interesse foi levado a ponto daquela rica herdeira se oferecer para comprar aos diferentes editores as obras de Guénon já publicadas, a fim de as centralizar numa única casa editora que publicaria os livros que se seguissem.
    Foi igualmente planejada a criação de uma livraria e de uma coleção que deveria publicar, além das obras de Guénon, outros trabalhos de características tradicionais e traduções de textos de caráter esotérico, especialmente textos relacionados com o esoterismo islâmico. Nesse sentido, foi decidido que Guénon partiria para o Egito com a missão de recolher, fazer copiar e traduzir tratados de esoterismo islâmico. E, assim, Guénon acompanhado pela srª Dina, deixou a França em 5 de Março de 1930.
    Inicialmente, estava prevista uma estada de três meses, mas Guénon acabaria por adiar sucessivamente o seu regresso – nunca mais voltando à Europa. Nas cartas para os amigos explicava que tinha renunciado a esse regresso “até nova ordem”, tanto mais que não lhe restava, no seu país de origem, nenhum parente mais ou menos afastado.
    Era o encerramento definitivo do seu ciclo europeu de vida, o qual nos aparece hoje como a preparação da fase mais “autêntica” dessa mesma vida.
    Expliquemos melhor.
    Aquele para quem só contava “o sobrenatural”, para quem “um ensinamento ocidental”, fosse qual fosse, não lhe dizia respeito, que se mantinha afastado de toda a ação exterior e de toda a luta de partidos, que sempre se abstivera de introduzir na sua obra “a menor idéia ‘pessoal’ ”, para quem a política “não interessa de nenhum modo e em nenhum grau”, que sabia nada ter de comum com os ocidentais modernos, aquele que se confessava: “Somos inteiramente oriental e sempre o afirmamos tão claramente quanto possível” – este homem realmente estranho a essa época de perturbação constituída pelos anos 20 e 30, nesta Europa em que reinava a maior confusão, não podia continuar aqui sem ser esmagado.
 
Guénon, já instalado
no Cairo
    Portanto, Guénon foi “levado” para o Egito, onde inclusivamente poderia realizar a sua vocação iniciática num ambiente em que sobrevivia ainda alguma coisa de uma sociedade realmente tradicional.
    A fase “René Guénon” tinha terminado‑esse nome, que ele, aliás, considerava como sendo apenas “uma simples assinatura igual a qualquer outra”, subsistirá somente como assinatura dos textos.
    Nasceu então a fase “Abdel Wahed Yahia”, seu nome islâmico, que significa “o servidor do Único". E não podemos deixar de considerar esta passagem do Ocidente para o Oriente como profundamente simbólica.
    Totalmente islamizado, falando árabe sem qualquer sotaque, Abdel Wahed Yahia é agora apenas mais um habitante do Egito, vivendo uma vida muito modesta, dividida entre o estudo e a oração.
     Do ponto de vista das publicações, os dois primeiros anos de vida no Egito seriam, aliás, particularmente fecundos: “Le Symbolisme de la Croix" (“O Simbolismo da Cruz”) apareceu em 1931 e no ano seguinte “Les États Multiples de l'Être” (Os Estados Múltiplos do Ser). Por outro lado, publicou diversos artigos na revista egípcia “El Marifah” (“O Conhecimento”), inteiramente redigida em língua árabe. E alimentava uma correspondência cada dia mais considerável.
Fátima, Guénon
e a primeira filha.
      Em Julho de 1934 daria mais um passo em frente na sua integração no mundo árabe, desposando Fátima, filha mais velha do Sheikh Mohammed Ibrahim. Em 1937 deixou o Cairo com a sua nova família, indo viver para os arredores, “um lugar onde não se ouve qualquer ruído e onde não nos arriscamos a ser incomodado incessantemente por uns e por outros”. Era uma vivenda branca, escondida pela verdura, na esquina de uma rua tranqüila. Guénon chamou‑lhe “vila Fátima” e sobre a porta estava escrita em árabe a frase: “Deus é a Majestade das Majestades”.    Nesse lugar de serenidade, Abdel Wahed Yahia fugia efetivamente a todas as vaidades deste Mundo, refugiado no seu quase anonimato. Mesmo a maior parte dos seus amigos em França ignorava essa morada, sendo toda a correspondência enviada para uma posta‑restante. No entanto, de quando em quando recebia a visita ocasional de alguns amigos e admiradores como Frithjof Schuon, que iam ali prestar tributo de tudo quanto lhe deviam.

    1937, 1938 e 1939 foram anos em que diversos problemas de saúde o afetaram grandemente, a ponto de o imobilizarem durante meses seguidos. E daí em diante só alternadamente voltaria a retomar as suas atividades. Aliás, a guerra interrompeu a aparição da revista "Études Traditionnelles”, que só viria a reaparecer em 1945, novamente com a sua colaboração tanto quanto possível assídua.
    Entretanto, em 1944, teve a alegria de ver nascer a sua primeira filha, Khadija.       E logo que as hostilidades terminaram pôde voltar a publicar as suas obras, elaboradas precisamente durante esse período em que as relações entre o Egito e a maior parte dos países da Europa estiveram interrompias e em que, portanto, o fluxo de correspondência, que tanto tempo lhe tomava a responder, abrandara o bastante para lhe permitir dedicar‑se inteiramente à sua obra. O primeiro volume a aparecer logo a seguir à guerra foi “Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps” (O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos). Seguiram‑se “Aperçus sur l'Initiation” (Sinopses sobre a Iniciação, “Les principes du calcul infinitesimal” (Os princípios do cálculo infinitesimal) e em 1946 a última obra publicada durante a sua vida, “La Grande Tríade” (A Grande Tríade).

Coomaraswamy
          No final desse ano de 1946, por razões que ignoramos, alugou a sua casa e regressou ao Cairo, vivendo numa casa pequena e sombria onde, em 1947, nasceu a sua filha Leila. Ainda nesse ano recebeu a visita de Ananda Coomaraswamy, cuja obra tinha. em grande consideração e que, juntamente com Marco Pallis, viria a influenciar a visão que Guénon tinha acerca do Budismo.
    Em Novembro de 1948 dirigiu às autoridades do Cairo um requerimento solicitando a nacionalidade egípcia, o que só conseguiu com grande dificuldade. Nesse documento declarava expressamente que tinha “escolhido o Egito como pátria”.
    Em 1948 e 1949 a sua saúde piorou, ressentindo‑se de um Inverno anormalmente rigoroso.Mas uma nova alegria veio compensar esse sofrimento: nasceu o primeiro filho homem, Ahmed, em Setembro de 1949.
    No entanto, as preocupações aumentavam: em Novembro do ano seguinte os três filhos adoeceram ao mesmo tempo e, enquanto não se curaram, Guénon recusou‑se a deixar‑se tratar, a tal ponto que se lhe tornou impossível qualquer atividade e os seus amigos não receberam mais nenhuma carta sua. Praticamente os únicos remédios que consentia em tomar eram os que pertenciam a uma terapêutica natural mas não preventiva. O seu médico pessoal escrevia:
    “Recusou‑se formalmente a efetuar qualquer exame laboratorial. Muitas vezes lhe pedi que o deixasse fazer, mas sempre opôs a recusa mais absoluta”.
    E, entretanto, os seus males se agravavam de dia para dia: tinha dificuldade para falar, pronunciava com dificuldade algumas palavras e fazia certos movimentos de modo descontrolado.
    Até que, em 7 de Janeiro de 1951, verificou‑se o desenlace: já não conseguia alimentar‑se nem ingerir medicamento algum, embora mantivesse a lucidez. Várias vezes ergueu a cabeça das almofadas gritando (em árabe) que a alma se lhe estava a escapar do corpo. Morreu às 23 horas desse dia, sendo as suas últimas palavras “Allah, Allah”. Segundo as testemunhas, o seu corpo repousava enfim “calmamente, com o rosto muito sereno, tendo desaparecido a crispação das últimas horas”. E o seu médico não soube explicar qual a causa da morte, visto que nenhum órgão fora particularmente atingido “como se a alma tivesse partido misteriosamente”.
    Os funerais, muito simples, decorreram no dia seguinte. O corpo ficou depositado no túmulo da família de sua mulher e, de acordo com o ritual islâmico, foi envolto num lençol de linho e deitado diretamente sobre a areia, com o rosto voltado para Meca.
 
Guénon e suas duas
filhas mais velhas.
    Pouco antes de morrer, Guénon tinha declarado a sua mulher que desejava que o seu gabinete de trabalho fosse mantido tal como estava, prometendo “que, mesmo invisível, ele estaria ai”.
    Alguns meses mais tarde, em Maio, nascia um filho póstumo, a quem foi dado o nome do pai, Abdel Wahed.
    E no final desse ano a revista "Études Traditionnelles” consagrava um número triplo especial à sua memória, com a colaboração de Paul Chacornac, Jean Reyor, Ananda Coomaraswamy, Leopold Ziegler, Michel Vâlsan, Frithjof Schuon, Luc Benoist, André Préau, Jean Thamar, Marco Pallis, Gonzague Truc, Frans Vreede e Mario Meunier, autores provenientes dos mais diversos horizontes espirituais e que tinham em comum apenas o mesmo respeito pela Tradição e, necessariamente, pela obra ímpar de René Guénon.
Ediçao brasileira
      Este não deixara livros inéditos mas tinha expressado o voto de que fossem reunidos em volumes os numerosos artigos dispersos por diversas publicações e que tinham sido integrados em obras já compostas.
    Dando cumprimento a esse desejo, surgiram, desde então, mais os seguintes títulos: “Initiation et réalisation spirituelle” (Iniciação e realização espiritual) (1952) e “Aperçus sur l'ésotérisme chrétien” (Sinopses sobre o esoterismo cristão) (1954), que completaram respectivamente “Aperçus sur l'Initiation” e “L'ésotérisme de Dante”; "Symboles fondamentaux de la science sacrée" (Símbolos fundamentais da ciência sagrada) (1962), "Études sur la Franc‑Maçonnerie et le Compagnonnage” (Estudos sobre a Franco‑Maçonaria e o Companheirismo) (1965), " Études sur l'Hindouisme” (Estudos sobre o Hinduísmo) (1966), “Formes traditionnelles et cycles cosmiques” (Formas tradicionais e ciclos cósmicos) (1970).
    Por fim, apareceram “Aperçus sur l'ésotérisme islamique et le Taoisme” (Sinopses sobre o esoterismo islâmico e o Taoísmo 1973), “Comptes‑rendus” (críticas de artigos e livros) (1973) e "Mélanges" (Miscelâneas) (1976).
    
Alguns traços do seu retrato
    
    É o próprio Paul Chacornac quem nos descreve, em “La vie simple de René Guénon”, o seu encontro com Guénon:
    “Uma manhã, estávamos a 10 de Janeiro de 1922, vimos entrar na nossa loja do Quai Saint‑Michel um homem alto, magro e moreno, aparentando trinta anos, vestido de negro, com aspecto clássico do universitário francês. O seu rosto comprido, cortado por um fino bigode, era iluminado por dois olhos estranhamente claros e agudos que davam a impressão de ver para além das aparências.”
    “Por vezes saía à noite para visitar amigos íntimos ou assistir a alguns concertos, sempre acompanhado de sua mulher, muito boa intérprete musical. No entanto, preferia os serões familiares, em que sua mulher tocava piano em surdina enquanto ele lia. Acrescentamos que estava sempre de humor igual e afável. A parte da sua residência em que se encontrava a maior parte das vezes era o seu quarto, no qual tinha a sua mesa de trabalho (objeto sagrado em que era proibido tocar). Tudo estava aí meticulosamente arrumado."
    Frans Vreede, um dos seus amigos íntimos e que freqüentava a residência de Guénon, conta que assistiu ali, muitas vezes, a reuniões “que se arrastavam pela noite dentro, durante as quais, apesar do cansaço, Guénon respondia com paciência infatigável e lúcida às questões pouco inteligentes e insólitas postas por visitantes de passagem: hindus, muçulmanos e cristãos”.
      François Bonjean, outro dos seus amigos, descreve deste modo como decorriam as reuniões em sua casa com a presença de muçulmanos, hindus, judeus e cristãos “que possuíam apenas um conhecimento obscuro das suas religiões e que estavam já fortemente ocidentalizados”. Era com esses que Guénon conversava infatigavelmente. "Poliglota, conhecia latim, grego, hebraico, inglês, alemão, italiano, espanhol, russo e polaco. Desse modo, podia facilmente responder a qualquer dos seus interlocutores nas suas respectivas línguas.
    Vejo‑o ainda, alto, magro, cheio de boa fé, enfrentando os seus adversários. O espetáculo desse ocidental defendendo tenazmente a herança do Oriente contra os orientais, tinha algo de grandeza. A discussão, por vezes, era interrompida apenas pelo nascer de um novo dia”.
    Outro dos seus amigos, Gonzague Truc, descreveu assim as suas conversas com Guénon:
    “A sua conversação era séria sem ser aborrecida, pelo contrário: era tão apaixonante como rica de lucidez, afastando facilmente toda a futilidade e marcando, por vezes, a subtileza com uma ironia grave ou um entusiasmo contido. Com ele, insensivelmente, abandonava‑se o mundo para entrar no verdadeiro Mundo e passar da “representação” ao princípio... O seu discurso, ameno e sempre familiar, apesar da sua densidade, era apenas a sua obra falada”.
    Com Probst‑Biraben passeava‑se ao longo dos cais da ilha de S. Luis, “sempre falando de Esoterismo ou de coisas orientais”.
    
Os detratores e os continuadores
    
    Tal como, em vida, a Imprensa apenas lhe concedeu a honra de dois artigos em obscuras revistas, também hoje o nome de René Guénon não se encontra nas enciclopédias nem tão‑pouco na maior parte das bibliografias tantas vezes citadas em livros que pretendem dizer‑nos “tudo” sobre o esoterismo, as sociedades secretas, a iniciação, etc. O seu nome não aparece aí – e ainda bem; é muito bom sinal que assim seja. Porque isso significa que menos oportunidades haverá de deturpar o valor da sua vida e da sua obra.
    De fato, é necessário fixarmos esta noção: Guénon não escreveu para o “grande público”, nem pretendeu ser um “divulgador”. As suas palavras dirigem‑se àqueles que forem capazes de as compreender ou de as entender como aviso e indicação do caminho a seguir.
     (Por esse motivo, diga‑se de passagem, esta coleção deveria, no plano ideal, ter começado com um livro de Guénon – seria uma questão de coerência. Simplesmente, pareceu‑nos melhor “estratégia” habituar o leitor a uma certa qualidade intelectual, e, desse modo, prepará‑lo para as obras que viriam a seguir).
     Nesse sentido, todas as tentativas de divulgar a sua obra ou de adaptá‑la aos hábitos de consumo do tal “grande público” só poderiam conduzir a um fim: a deturpação, consciente ou involuntária, do que Guénon nos quis dizer.
 
Guénon e Schuon, no Cairo
[http://mysticbourgeoisie.blogspot.com]
     Por outro lado, convém citar o trabalho daqueles que receberam da obra de Guénon, ou mesmo pessoalmente, o incentivo necessário para poderem prosseguir os seus estudos de caráter tradicional.
     Falamos do grupo de colaboradores da revista "Études Traditionelles”, entre os quais destacamos Michel Vâlsan, Charles‑André Gillis, Gaston Georgel, Léo Schaya e o próprio Frithjof Schuon.
     A essa revista e aos seus colaboradores, à fidelidade que têm demonstrado a respeito dos ensinamentos que Guénon deixou nas suas obras, devemos hoje a continuidade de uma base segura de ortodoxia tradicional.
     Outros nomes convém ainda referir, por refletirem nas respectivas obras a influência de Guénon, ou por revelarem conhecimento deste autor: Julius Evola, Frithjof Schuon, Martin Lings, Seyyed Hossebi Nasr, Títus Burckhardt, Luc Benoist, Paul Arnold, Antonin Artaud, Michel Lancelot, René Alleau, Jean Palou, Serge Hutin, Jean Tourniac, Raymond Abellio, Louis Pauwels, Roger Peyrefitte, Pierre Guérin, Antoine Faivre.
 
Nota sobre o autor
Antônio Carlos Carvalho é o tradutor e apresentador da obra de René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, publicada pela Editorial Vega, em Lisboa, em outubro de 1977. O texto que acabamos de transcrever constitui o Prefácio dessa edição, que se encontra esgotada.
 
Livros de René Guénon traduzidos ao português
•   A crise do mundo moderno, tradução de Antonio Carlos Carvalho. Lisboa, Editorial Vega, 1977.
•   O esoterismo de Dante seguido de São Bernardo, tradução de Antonio Carlos Carvalho. Lisboa, Editorial Vega, 1978.
•   O rei do mundo, tradução de Rui José Sacramento Alecrim. Lisboa, Edições 70, 1982.
•   A grande tríade, tradução de Daniel Camarinha da Silva. São Paulo, Pensamento, 1983.
•   Os símbolos da ciência sagrada, tradução de José Constantino Kairalla Riemma. São Paulo, Pensamento, 1983.
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