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23 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Bom para a inteligência
Constantino K. Riemma
 
“Jogar baralho é bom para desenvolver a inteligência” era assim que meu avô árabe, Youssef Kairalla, incentivava seus filhos e netos a jogarem com ele. O Buraco e o Crapô – um tipo de paciência com a participação de dois jogadores – estavam entre os que ele mais nos estimulava a praticar.
Devo ao meu inesquecível e afetuoso avô, José Kairalla uma relação mais elaborada com as cartas de jogar, pois durante a primeira parte da infância o lazer se resumia aos baralhos infantis, tipo Mico Preto, ou a jogos simplificados com as cartas comuns, como é o caso do “rouba montinho”.
José Constantino Kairalla Riemma e seu avô José Kairalla
Constantino e José Kairalla, em 1945
 
"Gido" (era assim que conseguíamos pronunciar a palavra árabe que significa avô) mantinha com o jogo a mesma atitude leve e séria que voltava às demais questões de sua vida, entre elas as muitas responsabilidades como provedor de uma numerosa família. Ele evocava em mim o empenho e o interesse para descobrir e aplicar o raciocínio necessário ao bom desempenho nos jogos de baralho, em especial no crapô.
No pós-guerra, época de sobriedade e na qual não existia ainda televisão, o lazer dentro de casa, à noite ou nas horas de chuva, quando não dava para a meninada jogar bola e brincar ao ar livre,  envolvia quase sempre jogos que exercitam habilidades manuais, como é o caso do futebol de botão e das peças para montar, ou que puxam pela inteligência, tal como damas, xadrez, quebra-cabeças e jogos de baralho.
Nesse contexto, curiosamente, o baralho também era e continua a ser utilizado como recurso de criação que exige habilidade manual: construir castelos de carta estende ainda mais a espantosa multiplicidade de utilização do baralho. É demais!
Na minha história pessoal, guardo cenas vivas de jogos de baralho em família. Em 1951, quando meu pai, bancário, foi transferido de Uchoa, no norte de São Paulo, para Londrina, no norte do Paraná, esta cidade já cumpria um importante papel econômico, apesar de ter se passado, então, apenas 18 anos desde sua fundação. A vocação comercial de Londrina ainda não dera tempo para a criação de espaços culturais: além da biblioteca municipal, existiam apenas dois ou três cinemas.
Lá não chegavam as transmissões das grandes emissoras de São Paulo e Rio, reduzindo – sem as famosas novelas, programas humorísticos e de auditório – o entretenimento via rádio. Jogar baralho era, então, uma das alternativas para passatempo em família.
 
Castelo de Cartas, pintura de A. Ravisk
Castelo de cartas de Alexej Raviski
in www.ravski.com
Nesse período de minha história pessoal, aos sábados à noite, os dois irmãos mais velhos (12 e 9 anos), depois que os dois mais novos iam para a cama, éramos convidados pelos nossos pais para jogar baralho. E a dinheiro! Esse dinheiro vivo, constituído de moedas guardadas num vidro de compota, era distribuído entre os quatro jogadores, atiçando o empenho e a atenção. Terminada a sessão e comparados os resultados das duplas, as moedas voltavam para o pote...
Essa atitude dos nossos pais talvez tenha sido um importante reforço para lidarmos de forma ludica, não gananciosa, com as disputas no jogo de cartas.
O "pote" de moedas para jogar baralho
Vejam só...
 
O baralho, como em qualquer outro jogo competitivo, envolve combate ao adversário, estratégias e artimanhas, cuidados defensivos, prudência e gestos de audácia, ao lado da solidariedade que deve ser mantida na dupla! Quando acrescenta dinheiro, ganhos e perdas, o jogo de cartas torna-se mais excitante e chega a se tornar vício para algumas pessoas. Por vezes, vício devastador que leva famílias ao desespero.
No lado italiano da minha família, que também curtia o baralho, algumas tias ensinavam a usar fichas para contar o resultado. Mas não se ouvia qualquer caso de envolvimento com jogos a dinheiro. Já do lado árabe havia relatos de conhecidos e mesmo parentes que se deixaram levar pelo vício das cartas. Esposas e filhos precisavam ser socorridos para não passarem necessidades. Era o lado sombrio das cartas, um pecado a ser evitado.
 
[Nota: Problemas sociais de longa data, resultantes das apostas em dinheiro, são mencionados em Hermes e Montezuma - Um Tarot Mexicano do século XVI na pesquisa da historiadora mexicana Maria Isabel Grañén Porrúa.]
Em nenhum dos ramos da minha família ouvi menção ao uso do baralho em mancias. Acredito que as orientações católicas (lado italiano) e ortodoxas (lado árabe) não deram espaço para a cartomancia. No entanto, após o falecimento de uma tia solteira (do lado italiano) encontramos entre os seus guardados um baralho com anotações de cartomancia, que utilizei como ilustração para o tema “Lazer e cartomancia o Brasil”. Dela, portanto, herdei apenas o baralho e não a arte de ler as cartas!
Quando convidei os tarólogos que participam do site Clube do Tarô para comporem o painel sobre “As cartas de jogar pelo mundo afora”, recebi de um colaborador a observação de que não entendia o fundamento de um tema desses num site sobre tarologia... Posso compreender aqueles que buscam estabelecer uma separação nítida entre o uso das cartas com finalidade simbólica e sua utilização como lazer e negócios comerciais. No entanto, histórica e culturalmente o baralho é o mesmo e, a rigor, a diferença se encontra apenas na forma de sua utilização.
É importante também, para aqueles que querem conhecer a realidade, lembrar que os registros históricos confirmam que o uso das cartas como fonte de lazer e de mancias antecede, em séculos, sua tradução moderna como linguagem simbólica.
Ao estudarmos a história do baralho fica mais fácil reconhecer o motivo pelo qual o espírito de jogo e de seus artifícios impregnou muitas linhas de prática da cartomancia, associadas ou não à magia, e que acabam por por estimular um certo faz-de-conta em certas tribos de tarólogos e cartomantes.
 
Fichas e cartas
Fichas e dinheiro por trás
do baralho, nos jogos, na
cartomancia e tarologia...
Nos dias de hoje, corre dinheiro com os baralhos, não apenas nos clubes e cassinos, mas também nos atendimentos e na remuneração de cartomantes e de tarólogos. Portanto, apesar das notáveis diferenças de uso, existem muitos pontos em comum...
É por essa razão que deixo em aberto o convite para a divulgação, neste painel, de estudos e depoimentos que ajudem a retratar as inesgotáveis manifestações do baralho na cultura ocidental. Por mais delicado que o tema possa parecer àqueles que se interessam apenas pelos símbolos esotéricos, pesquisar a história, o processo cultural e social relativo ao baralho, é uma atividade muito esclarecedora.
julho.11
Constantino K. Riemma - ckr@clubedotaro.com.br
Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores
 
  Baralho Cigano
  Tarô Egípcio
  Quatro pilares
  Orientação
  O Momento
  I Ching
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